A velha piada diz que no Brasil o ano só começo depois do carnaval.Para milhares de brasileiros, operários concretos das avenidas por onde desfila o poder, a gargalhada não se aplica. Para outros, elitizados ou etilizados, talvez sim. Diante das recentes tragédias que descerraram a placa de inauguração do novo ano, dos sambas-enredo construídos para explica-las e das alegorias e adereços criados para distrair a plateia da arquibancada, parece mesmo que já começo o carnaval.
Juntamente com ele começaram as promessas feitas lá no Réveillon. Muitas pessoas tem o hábito de anotar suas promessas ou objetivos, como queiram chamar, em uma folha de papel. Depois de listadas, metade dessas pessoas picota a folha, colocam os pedacinhos em um saquinho plástico e fazem confete para o próximo carnaval, já que não vão cumpri-las mesmo. A outra metade guarda a folha em uma gaveta e só voltam lê-la no final do ano para se martirizarem por não terem cumprido o juramento.
No ranking das promessas de início de ano estão: para de fumar/beber, praticar atividades físicas, gastar menos, mudar de emprego, voltar a estudar, dar mais atenção para a família ou amigos e, primeira da lista, emagrecer. Aliás, no ano novo, fazer regime é uma promessa mais dos homens, já que as mulheres prometem isso o ano todo, não por culpa delas, mas do espelho, que nunca reflete o que elas querem ver.
Quando ouço a promessa de fazer regime, emagrecer, não há como não me lembrar de um antigo colega de trabalho. Todo janeiro ele contava a mesma história. Ele começava dizendo: “Bom, neste ano vou fazer regime e vou para de beber. Preciso emagrecer. Mas não dá para começar agora, porque em fevereiro tem carnaval e eu vou querer sair no bloco, certeza que vou beber. Em março eu começo. Só que em abril já é Páscoa, não vai adiantar começar, sei que vou comer muito chocolate. Em maio, também não dá, tem exposição na cidade, vou beber os dez dias de festa. Em junho e julho tem festa junina, vou beber quentão e comer doces até ficar triste. Agosto é mês dos pais, certeza que tem churrasco. Setembro é aniversário da minha mãe, mais churrasco e cerveja. Acho que em outubro vai dá pra começar. Não dá, tem festa do dia das crianças, vai ter cachorro quente e refrigerante à vontade. Novembro também não dá. Tem feriado prolongado em Finados, vai ser uma festança só. Dezembro, então, nem se fala, já é Natal. É, acho que esse ano não vai dá pra fazer regime. Ano que vem eu começo.”
Na prática, meu amigo ficava por vários anos sem fazer o regime prometido. Hoje, pensando a respeito, sei que não seria possível cumprir a promessa, já que o ano dele não começava ou não acabava. O ano atemporal em que ele vivia era feito de ciclos intermináveis.
Para que algo possa começar ou recomeçar é preciso que haja o término de outra coisa. Uma etapa só tem início quando uma anterior é encerrada. Os ciclos de nossas vidas são feitos de começo e fim, ou fim e começo. Também recomeço, quando algum começo não se completou, ficou paralisado. Sempre é preciso que uma etapa termine para que outra possa ser iniciada. Se ela não findar naturalmente, o que raramente acontece, devemos por um fim.
O regime, por exemplo, começa quando colocamos um fim na comilança, na inercia, na preguiça, na ansiedade, no stress e em qualquer causa alimentadora do nosso desejo de devorar. Qualquer começo é antecedido por um fim: do comodismo ou da aceleração, do nervoso ou da paciência, da correria ou da inércia, da estupidez ou da delicadeza, do medo ou da coragem excessiva, da infantilidade ou da maturidade extrema, do sim ou do não, do passado sempre presente ou do futuro incerto, de tudo que impeça de colocar-se um ponto final.Até mesmo a morte. Às vezesé necessáriosepultar pessoas definitivamente, estejam elas vivas ou mortas.
Também é um hábito buscarmos datas ou acontecimentos importantes em nossas vidas para marcarmos o fim ou início de uma etapa. O que nem sempre funciona, já que a tomada de decisão está ligada mais ao agir de que aos fatos. Apenas coloque um ponto final no parágrafo e comece a escrever o próximo capítulo da sua história ou o novo samba-enredo da sua vida, com as alegorias e os adereços que melhor ilustrar o tema escolhido.
