ARTIGO

Olho por olho, dente por dente

Olho por olho, dente por dente

Por Sérgio Piva

Por Sérgio Piva

Publicada há 4 anos

Algumas profissões são inspiradoras, objetos de admiração, modelos de ação comunitária positiva, expressão de bondade dos seres. Uma delas, talvez a primeira da lista, o bombeiro. Respeitadíssima, não há quem fale mal, ao contrário, sobram elogios às pessoas nessa ocupação, que carregam em certas situações o status de heróis.

Inúmeras profissões estão revestidas com aura benfeitora, sempre lembradas com positivismo, até mesmo algumas que estão à margem daquilo que denominamos sociedade, como a profissão de prostituta, chamada de “a mais velha das ocupações”. Pode ser que seja mesmo, porque ser filho da puta faz parte da índole de muitos exemplares da espécie humana. 

A prostituta sempre acumulou várias funções: dar prazer, carinho, conselhos, consolar. Quase uma psicóloga, quando esse ofício ainda não existia. Com duas diferenças básicas: tratava o paciente, mas sem oferecer a cura definitiva, para não perder o freguês, e, a segunda, o preço da sessão, qualquer profissional mediana cobra bem mais caro a hora que a melhor psicóloga cobraria. 

Profissões ou serviços estranhos também existem aos montes, como o cheirador de axila suada, para saber se o desodorante realmente funciona, o inspetor de cuspe, que deve ficar atento aos porcalhões que vivem cuspindo nas ruas da Índia e fazê-los limpar a sujeira, o tanatologista, que, por meio da música, garante que as pessoas tenham uma morte mais tranquila, provador de ração para cães, serviço “bom pra cachorro”, dentre tantas outras. Todas elas, por pior que pareçam, causam em nós indiferença ou, no máximo, nos faz achar graça, desde que nenhuma delas seja a nossa própria. 

Contudo, existem profissões que invariavelmente no trazem ideias negativas, certa sensação de que o executor só pode ser do mal. Por exemplo, o dentista. Sempre que ouço essa palavra, penso em dor. Nenhuma ideia positiva vem a minha cabeça. Por mais que meu dente esteja doendo, imagino que o dentista vai me causar mais dor. Não é que eu tenha medo de dentista, não é isso, o que eu tenho é uma coisa bem diferente, somente pavor.

A própria palavra dentista traz em si uma semântica tão carregada de negativismo que muitos profissionais querem abolir o termo, usar outro politicamente correto, ou de imagem dissociativa do ser carrasco da cultura humana, como odontólogo, odontologista. Até que disfarça, parece nome de pessoa do bem.

Certa vez, estava eu deitado em uma daquelas cadeiras de odontólogo (como soa bonito!) de onde não se pode escapar até que o libertem ao som do hino “pronto, acabou”, depois de ter sido ludibriado com a frase “fique tranquilo, não vai sentir dor”, quando minha boca começou a adormecer e o cérebro acordou disposto a imaginar tudo que estava acontecendo lá, já que meu olho permanecia cerrado. 

Ouvi o primeiro comando à assistente, que nesse caso, assiste mesmo, é uma cotorturadora, cuja função é a de garantir que eu não saia ileso. Primeira ordem: cone preto. Pensei, vão interditar minha boca. Só não pude ver se ele tinha faixas refletivas. O que se seguiu foi uma infinidade de jargões e códigos para que eu não descobrisse qual instrumento de tortura estava sendo usado. O que não funcionou comigo. Podia deduzir claramente, pelos sons emitidos por cada um deles, de quais ferramentas se tratavam: furadeira, serra elétrica, formão, foice, prensa (como isso coube na minha boca?). Não me chame de boca grande, isso não.

            Após um longo tempo, de boca aberta e olho fechado, posição propícia à meditação, consegui comprovar a teoria de Einstein sobre a relatividade entre tempo e espaço, dentre outras teorias da conspiração. Todas elas contra mim, óbvio. Ao final, não senti qualquer tipo de dor, nem umazinha sequer, para que eu pudesse justificar toda minha ansiedade, pavor e aversão à profissão. Nem mesmo depois. Doeu tudo antes.

Sérgio Piva

s.piva@hotmail.com

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