HISTÓRIA

EU VIVI HÁ TRINTA ANOS ATRÁS

EU VIVI HÁ TRINTA ANOS ATRÁS

Por Zé Renato

Por Zé Renato

Publicada há 4 anos


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ZÉ RENATO

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V

ozes eufóricas, gritos, urros, brados... Garrafas de vinho barato, cachaça, latas de cerveja circulavam livremente; de forma fraternal, iam de boca em boca; cigarros também faziam o mesmo movimento, eventualmente, baseados.

Êxtase! Dionísio presente.

Acabara há pouco mais uma apresentação. Deixava o palco, cansado, um misto de Genival Lacerda, Elvis e Jerry Lee, o baiano mais norte-americano, britânico do mundo: o velho Raul.

Saudado de forma ensandecida e messiânica pelo público.

Encostou sua Gibson 375 no pedestal, sentou-se com um copo de cerveja. Enquanto refestelava-se, sorvendo grandes goles do líquido, enxugava o suor com uma pequena toalha que lhe fora entregue por um membro da trupe.

Observei-o por alguns instantes. Vieram-me à cabeça muitas coisas, como um filme.

Recordo-me de sua primeira aparição para o grande público: “estourou” em 1973, com a música Ouro de tolo, uma espécie de prenúncio do rap, com uma harmonia meio brega, uma poesia poderosa e cortante como letra. Cada verso uma porrada.

Assim começou tudo.

Em pouco tempo, atingiu uma notoriedade e um respeito enormes do público jovem. Rapidamente identificado com suas palavras.

Solapou jovem guarda, tropicália, bossa nova e afins.

Lembremos: o Brasil era carente de rock. Sim, tínhamos as bandas O Terço, Terreno Baldio e Joelho de Porco, todavia, não chegavam à maioria do público. Os Mutantes viviam seu eclipse.

Era uma voz diferente. Falava de tudo e de todos. Todavia, ia muito além.

Não me contive, criei coragem, aproximei-me.

Para espanto, ninguém barrou minha subida ao palco.

Fiquei frente a frente com Raul.

Alguns segundos em silêncio... Perguntei:

— Tudo bem, Raul?

— Beleza — respondeu.

— Podemos conversar um pouco? — disse-lhe.

— Lógico. Senta aí.

— Qual é a sensação de ser um ícone, a maior voz desse público?

— Cara, não vejo dessa maneira. Não tenho essa pretensão. Apenas componho e canto aquilo que penso e sinto.

— Se o público gosta, melhor.

— Veja, depois de trinta anos, reflito acerca de tudo que fiz e vivi.

— Como assim?

— Não estou mais aqui.

— Que que cê tá falando, mano?

— Já estou em outro plano. Você não percebeu? Lembra da Metamorfose ambulante? Pois é...

— Como assim?

— Faz trinta anos que parti.

— Raul, estou meio confuso...

— Hoje verifico que mudaria algumas coisas.

— Quais?

— Não deveria ter cometido tanto abuso, de álcool, drogas.

— Entendo.

— Desculpe, talvez não entenda. Mas hoje eu vou lhe mostrar. Quando comecei, influenciado pelo rock and roll, pelo forró, não sabia muito bem o que fazia, onde daria tudo isso. Foi tudo muito rápido... A fama, a fortuna, o estrelato e o exílio. Falhei como pai, como marido, como amigo... Errei muito.

— Calma aí Raul, você deixou um grande legado, uma grande obra, verdadeiras riquezas poética e musical.

— Isso é ilusório... Sinceramente, espero que permaneçam minhas mensagens de força, de fé, de vontade, de solidariedade, de desejo de mudança, de crença no humano, porém, daquele humano, para além do humano, distante das mediocridades, das mesmices, da burrice, entendeu?

— Você andou conversando com Nietzsche?

— Verdade. Já o lia. Agora conversamos.

— Sobre o quê?

— Não adianta insistir. Não estamos autorizados a falar do além.

— Há uma grande herança deixada. Você sabe.

— Verdade. Constato que antigos detratores, hoje, reconhecem meu trabalho. Com alguns, os quais critiquei, hoje sinto-me reconciliado. Por exemplo, Caetano Veloso. Fico feliz e em paz.

— Com o Paulo Coelho você pôde fazer as pazes em vida.

— Graças ao Marcelo Nova. Marselhesa é um grande cara. Ao contrário daquilo que muitos dizem. Injustamente. Fodam-se eles. Perdão. Esqueço que não posso mais blasfemar.

— Foda-se. Você pode. Você é o Raul. Sempre será.

— Valeu, mano. Suas palavras me tranquilizam. Me fortalecem. Percebo que meu trabalho não foi em vão.

— Óbvio que não. Você é gênio.

— Perdoe-me. Preciso voltar. Há uma jan programada com o Elvis, com Lenon e o Muddy Waters. Talvez o Brian Jones, a Janis, o Jimi e o Jim. Preciso me retirar.

— Vai em paz, irmão. Dê um grande beijo em todos.

— Muito obrigado. Será dado.

Não sei se acordei, se dormi, se sonhei. Talvez, tenha nascido há dez mil anos atrás...

Por via das dúvidas: TOCA RAUL!

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