CULTURA

QUANDO O CÉU CAIU

QUANDO O CÉU CAIU

Um pouco de Cada arte...

Um pouco de Cada arte...

Publicada há 4 anos

O. A.

SECATTO

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“Mas ai da terra e do mar, porque o Diabo desceu sobre vós

e está cheio de grande ira.”

Apocalipse 12:12

E

strondos, absurdos estrondos. Acordou assustado, arfando. Abraçou-se ao irmão. Tentou abrir a porta, mas viu grande fogo. Uma figura alada e terrível o encarou, furioso: Annu! Aj oloy ‘nnu faggu’ ‘nnag yn![1] E fechou a porta com rispidez. O fogo crepitou por debaixo dela, insistente. Uma explosão e sucessivos fragores. De súbito, então, um silêncio inquietador e a escuridão. Houve um estalo, e a porta se destrancou.

Ao abri-la, o menino e seu pequeno irmão se assombraram. O resto da casa se tinha ido. Os dois se viram perdidos e sufocados numa infinita escuridão: não havia sol, só nuvens negras e espessas. A única e pouca luz que tinham era a das chamas aqui e acolá; tímidas perto, mas monstruosas ao longe.

Ouviram um estalido de muitas asas acima, mas não puderam ver nada. Algo precipitou com grande troada. A figura alada caminhou para diante deles, seguido de alguns outros. Emanava uma luz tênue, mas que já o destacava na escuridão do mundo. No cabelo escuro e curto, duas finas tranças trabalhadas de cada lado a sobrepor-se às orelhas. O elmo partido jogou ao chão. Uma placa de metal lhe cingia o peito, com símbolos entalhados; da cintura para baixo, ourelas de armadura que desciam até pouco acima dos joelhos. As tiras das sandálias subiam pelas canelas; espada embainhada na cintura. Com semblante altivo, perguntou:

— Você está bem? Está ferido? — Pegou-o pelo braço.

— Não... — titubeou o menino. — O que aconteceu? — O irmão se agarrou à sua perna.

— O céu caiu, pequeno. E os demônios agora se assenhoreiam da terra e flagelam os homens.

— Deus!

— Por conta d’Ele estamos aqui. Mas parece que pouco podemos diante da fúria dos profanos...

— Onde estão meus pais?

— Fui mandado para proteger-te a ti, e a ti apenas. És o que mais importa agora. Não pudemos salvar tua família.

Com lágrimas nos olhos, abraçou o irmão caçula.

— Que desgraça é esta?

— Temos pouco tempo, pequeno.

— Por favor, me diga.

Ele olhou para os lados, atento, e voltou-se ao menino, com pressa:

— Há sete anos, um demônio muito poderoso veio à terra. Não devemos falar seu nome. Aqui ele preparou caminhos e reuniu muito poder para seu Príncipe e seus irmãos. Seduziu vários asseclas — satanistas a fazer-lhe a vontade por razões mórbidas e profanas. Assassinou homens e crianças; e por rituais macabros recolheu o sangue de incontáveis vítimas.

— Para que sangue?...

— O sangue é... — Foi interrompido por uma rajada de fogo. — Cuidado!

O alado o protegeu com as asas, que foram chamuscadas. Seu irmão, entretanto, foi consumido pelo fogo e caiu sem um ruído sequer.

— Não! Não! Meu irmão! — E inclinou-se sobre o corpo queimado e inerte a seu lado.

— Não há tempo para prantos, pequeno. Levanta. — Puxou-o pelo braço bruscamente.

— Por que você não o protegeu também? Por quê?!

— Só tu importas. Vamos — respondeu, com indiferença.

— Não pode ser. Por que isso está acontecendo? E por que eu?

Antes que pudesse ter resposta, o anjo lançou-o ao chão enquanto uma colossal onda de chamas passou ardendo pouco acima de suas cabeças. Um dos outros alados não conseguiu se esquivar e caiu aos gritos de dor, rolando no solo até não mais se mover. Ouviram-se, em seguida, uma agitação e um tumulto ali perto, no escuro. Então, chamas. De longe, uma voz hórrida e cruel gritou: Nak! Gheruy![2]

O alado que lhe falara assumiu a liderança novamente. Brandiu a espada. Os outros o seguiram.

— Cuidado! Todos em linha! — E os anjos se posicionaram. Então, indicou o menino ao anjo menor, com azáfama.

— Leva-o! Vai! Ao Arcanjo!

Voaram dali rapidamente. Ao olhar para trás, o menino viu em seu quarteirão devastado a horda de incontáveis demônios se precipitar sobre os poucos alados. Só fizeram ganhar-lhe tempo para a fuga... Sacrificaram-se por ele.

Muito longe dali, chegaram a um grande círculo de luz, como que desenhado no chão escuro de uma vasta planície. Vários anjos estavam nos limites do círculo. No centro, uma chama pálida ardia num turíbulo sobre um colunelo. Perto da flama, um anjo de maior estatura, de grande presença e barba e cabelos brancos com inúmeras tranças. Brilhava mais que todos os outros, até mais que a chama, e seus olhos eram estrelas fulgentes. Uma grande cicatriz lhe fendia a barba no lado esquerdo da face.

— Finalmente — proferiu.

— Eis a criança, senhor — disse o anjo menor; e olhou para trás, donde tinha vindo.

— Pequena criatura, o tempo é escasso, portanto serei direto contigo. — Sua voz era áspera e implacável. — Preciso de teu sangue para pôr fim a tudo isso e salvar os homens.

Aquelas palavras ecoaram na jovem mente do menino. Um pouco pela voz do Arcanjo, mas mais pelo conteúdo súbito e, para si, confuso.

— Meu sangue?

— O sangue é poder neste mundo. O sangue dos homens. O teu, contudo, é mais especial e poderoso do que qualquer outro por causa de ti mesmo. Dado de bom grado por ti, em sacrifício, sobrepujará todo o poder que os demônios angariaram em seus sinistros rituais. — O Arcanjo engoliu em seco, olhou por sobre a cabeça do menino, em direção ao lugar donde viera, e disse: — Eu te peço. Teu sangue dará aos anjos do Senhor o poder de subjugar todos os demônios; e a mim, o de derrotar o Príncipe das trevas.

Os anjos ao seu redor estavam inquietos. Agitavam-se e olhavam para a mesma direção.

— Anda, ou seremos dizimados aqui mesmo. Não haverá amanhã para os anjos nem para os homens.

— É para salvar os homens ou vocês?... Não vi nada do que eu ouvi ser de Deus em vocês, que me assustam tanto quanto os demônios de que falam. Que homens, se só vi até agora meu irmão, que os anjos não protegeram?

O Arcanjo parou, surpreso com a reação do menino. Nada conseguiu fazer ou dizer, senão ficar imóvel e silente por alguns segundos.

— Não questiones os Poderes de Deus, criança. Tua compreensão mortal não pode alcançar o mistério da Ordem que impera no Universo. Não há tempo para jogos. É sim ou não?

Não ter salvo seu irmão era o mesmo que tê-lo matado... Não poderia aquilo ser a vontade de Deus... Então, olhou para os olhos coruscantes do Arcanjo e respondeu, severo:

— Não.

Um dos anjos brilhantes que cercavam o Arcanjo se agitou, irado, e avançou sobre o menino de punhal em mão:

— Vy ‘nnu vell’adda, taryum e vluddo sdrenne.[3]

— Annu![4] — Interpôs-se o Arcanjo, com seu brilho a se inflamar. — De nada nos servirá se não for dado espontaneamente. — Foi então que o menino compreendeu a ameaça do anjo impaciente, cuja língua lhe era um apanhado de sons ininteligíveis.

Mas já era tarde. A nuvem de profanos se aproximava do grande círculo. Um outro alado que estava perto do turíbulo falou num tom monocórdio:

— Senhor, não há mais tempo para o encantamento. O fogo sagrado se apagou. Estamos por nossa conta... — Olhou para o horizonte e viu os demônios, que se aproximavam.

— Que seja! — disse o Arcanjo, resignado, mas furioso, empurrando o menino de lado e se dirigindo à borda do círculo.

Uma onda de demônios cercados por fogo quebrou o círculo e avançou sobre os anjos. No meio da nuvem demoníaca se pôde vislumbrar o Príncipe, caminhando a passos calmos, com um sorriso cruel no rosto monstruoso; suas asas de um couro escuro e repulsivo.

— Olá, Miguel, meu irmão. — O Arcanjo alteou o rosto, orgulhoso e desafiador, de espada em punho. — Belo era o livro que só a nós dois o Pai Eterno concedeu o privilégio de ler.

— Um grande erro.

— Ele não comete erros... E o livro, mais que belo, é preciso. Pois olha, Miguel. Olha ao teu redor e confirma com teus próprios olhos, irmão, a Profecia do Livro dos Anjos que se realiza. Tudo estava escrito. O menino não faz mais diferença. Acabou.

— Ainda não... — E alçou a espada, poderoso.

Ambos avançaram e se precipitaram um sobre o outro. O furor da batalha inflamou os outros imortais à sua volta, que digladiavam numa carnificina apocalíptica.

De súbito, o menino, no meio do próprio armagedon, viu-se só, e numa tristeza profunda como os abismos do inferno. Virou-se e, de costas para o embate, caminhou para longe dali, no escuro, à pouca luz das chamas que se levantavam e pareciam lamber as nuvens negras e densas em sua dança sinuosa no alto. Ninguém mais notou sua presença.

Não havia mais nada a fazer. Os sons de batalha e os gritos de morte foram se distanciando. Perdeu-se na escuridão quase tangível. Os celestiais e os demônios combateriam até a aniquilação do último imortal. Com isso levariam à destruição os homens e seu mundo. Era o fim. O fim dos céus. O fim dos homens. O fim de tudo.

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