ARTIGO

A vida e a fé

A vida e a fé

Por Amaury César Soares

Por Amaury César Soares

Publicada há 4 anos

Doutor Paulo acordou de madrugada com o celular tocando. Era do hospital. Chamavam-no para realizar uma cirurgia de emergência. O paciente havia chegado com uma perfuração no abdômen e tinha perdido muito sangue.

Assim que chegou ao hospital, uma enfermeira veio lhe avisar que a família do paciente queria lhe falar. Exigiam a conversa antes que a cirurgia se realizasse.

No breve diálogo que tiveram, os familiares do paciente informaram que, por motivos religiosos, ele não poderia receber sangue de outra pessoa. O médico ainda tentou argumentar, mas percebeu que não adiantava insistir. Prometeu fazer o que fosse possível.

Entretanto, já na sala de cirurgia, comunicou a todos que não iria atender as imposições da família. Iria fazer o que fosse necessário para salvar a vida do paciente. Era sua responsabilidade como médico.

A cirurgia foi bem sucedida. José (vamos chamá-lo assim) ficou algum tempo internado, recuperou-se bem e recebeu alta. Parecia que tudo tinha acabado bem.

No entanto, algum tempo depois, o cirurgião foi surpreendido por uma notícia desagradável: José havia procurado um advogado e o estava processando, exigindo uma reparação financeira por danos morais.

Para nós, que temos outra crença, que pensamos de forma diferente, é difícil aceitar que a família tente impedir o atendimento a um parente, principalmente numa situação grave, envolvendo risco de morte. Entretanto, é nosso dever respeitar a fé de cada um.

Da mesma forma, é difícil aceitar que um indivíduo tome a decisão de processar alguém que lhe salvou a vida. Mas situações como esta acontecem na rotina dos hospitais.

No nosso entendimento, a conduta do médico foi correta. Era seu dever salvar a vida da pessoa sob seus cuidados. Não havia tempo para discutir, argumentar, tentar mudar a forma de pensar da família. Provavelmente não teria sucesso. Ele fez o que tinha de fazer.

A sua decisão está amparada no artigo 31 do Código de Ética Médica, que dispõe o seguinte: “é vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte” (grifo nosso).

Tendo em vista a natureza do tema, achamos interessante tecer alguns comentários de caráter jurídico sobre a questão. Na situação descrita, considerando a legislação em vigor, o médico não pode ser responsabilizado por seu procedimento, nem civil nem criminalmente.

Responsabilidade civil: O artigo 186 do Código Civil estabelece que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Por sua vez, o artigo 927, do mesmo código, determina que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Entretanto, o inciso II do artigo 188 ressalva que não constitui ato ilícito a ação que tenha por objetivo remover perigo iminente. Foi o que aconteceu no caso narrado.

Responsabilidade criminal: O artigo 146, parágrafo 3º, inciso I, do Código Penal exclui expressamente o crime de constrangimento ilegal na hipótese de “intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida” (grifo nosso).

Ou seja, na situação de imediato risco de morte para a pessoa sob seus cuidados, o médico deve adotar todas as medidas necessárias para salvar a vida do paciente, mesmo contra a sua vontade ou a decisão de seus familiares. Diante do conflito entre dois bens juridicamente tutelados, a liberdade religiosa e a vida, o legislador fez a opção pelo segundo.

A situação seria totalmente diferente se não houvesse risco imediato para a vida do paciente. Nesta hipótese, o médico teria que respeitar a sua decisão ou a de seus familiares.

Como vemos, no exercício da sua atividade, às vezes, o médico tem que lidar com questões complexas, que extrapolam os conhecimentos técnicos de sua profissão. Em algumas ocasiões, ele tem apenas alguns minutos ou segundos para tomar, sozinho, decisões difíceis e importantíssimas para a vida de seus pacientes. Nessas ocasiões, ele deve sentir toda a solidão que envolve a sua difícil missão.

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