ARTIGO

HANNAH ARENDT: a banalização do mal

HANNAH ARENDT: a banalização do mal

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

Filósofa alemã de origem judia, Hannah Arendt foi autora de livros Homens em Tempos Sombrios, Origens do Totalitarismo e Eichmann em Jerusalém. Nesta última obra, ela apresenta a expressão “banalidade do mal”, depois de acompanhar o julgamento de um nazista pelo Estado de Israel, na cidade de Jerusalém, em 1961.

A maldade é trivial e não há em si profundidade alguma, e a lógica social e estrutural da banalidade do mal na perspectiva de Hannah Arendt compreende as constituintes “horror e a perversidade”, segundo estratégias de manutenção específicas. Na perspectiva de Arendt,

[...] basta que haja pessoas supérfluas, banais e simplistas, [...] que sigam, cotidianamente, a normalidade da vida – como um fotógrafo ou um burocrata – para que o mal consiga tão facilmente se estabelecer na sociedade. Entretanto, com isso, ela não minimiza as consequências individuais ou coletivas das horripilantes atrocidades que advêm dessa incapacidade de julgar, criticar e conhecer a realidade. (GUIMARÃES, 2019, p. 60).

 Em seu estágio extremo de perversidade, o mal, muito presente em regimes totalitaristas, torna-se aceito devido às ações de pessoas supérfluas, banais e simplistas, em uma forma pejorativa de torná-lo consentido ou conformado à vida cotidiana. A “aparente banalidade do agente perpetrador do mal somente é identificável contra o pano de fundo da situação da sociedade totalitária” (XARÃO, 2017, p. 307). Portanto, a banalização do mal participa de um processo em que a “maldade se torna aceitável, praticável e corriqueira, mesmo que seus algozes nunca precisem engatilhar um revólver, ou empunhar uma faca, ou cometer qualquer ato considerável atroz” (GUIMARÃES, 2019, p. 61).

Quando se seguem as normas, as regras (mesmo que atentem contra a vida humana) e se reduz a capacidade de julgamento ou conhecimento da realidade externa, o ser humano se reduz a suas atividades individuais sem questionar-lhes o sentido. Posta essa condição, o mal se instala, invisível, natural e perverso (SILVA, 2013). Nesse sentido, o mal se faz exitoso quando a vida é fracionada em espaços existenciais em descompasso com o coletivo: o trabalho compartimentado em etapas facilita a inexistência da comunicação; estabelecem-se fronteiras invisíveis entre o coletivo (o “outro”) e o trabalhador individual (o “eu”) e forma-se um abismo intransponível entre o “eu” e o “outro”. Não se questiona, duvida ou busca conhecer, apenas se cumprem as tarefas. O mal se instala como normal no cotidiano, não se rompe o ciclo da perpetuação da “banalização do mal”. O mal simplesmente não tem motivos, nem explicações.

O julgamento de Eichmann não ofereceu apenas o  

[...] entendimento sobre aquele burocrata banal na cabine de vidro, mas também a possibilidade de repensar as tradicionais formas de entender a nossa formação moral, quase sempre baseadas na convicção de que os valores morais devem ser fortemente difundidos através de conteúdos específicos e como um antídoto ao mal. (ANDRADE, 2010, p. 115).

A simples difusão voluntarista de conhecimentos morais não parece ser condição suficiente e necessária para a escolha e a prática do bem. A reflexão de Arendt vai além da educação moral com conteúdos moralizantes: antes, deve-se abrir para uma prática marcada pelo pensamento, pelo questionamento, pela dúvida sobre a aparente verdade real. Deve-se romper com o verdadeiro que impõe um servilismo profundo, alienante, sem qualquer explicação. O servilismo é tão típico de burocratas subservientes, alienados, como valor falso de obediência.

O mal, segundo Arendt, não é externo aos indivíduos, nem força mítica ou mística, nem estereótipo de perversidade. O mal está acessível a todos os seres humanos segundo suas escolhas e capacidade de questionamento. O desconhecimento não justifica o mal, uma vez que detém a capacidade de raciocínio, de lógica e de pensar, em condição de romper com a superficialidade, a banalidade e a cotidianidade da sociedade moderna. A banalidade do mal está no executar atividades comuns, viver vidas comuns, impulsionar as engrenagens do horror social em movimentos automáticos. O mal circula com liberdade nas estruturas sociais por meio do desconhecimento, da não ciência – o comum assim o é pela alienação do real.

A vida moderna, em seu formato, faz proliferar o mal, porque falta tempo de conhecer, falta disposição para questionar ou verificar e avaliar, carece de vontade ou interesse para o debate, falta curiosidade ou mesmo má vontade para ver, persistindo na superficialidade da vida. Neste cenário, o “trabalho alienado e o estímulo às virtudes honrosas do trabalho não favorecem um aprofundamento da compreensão das estruturas, das ideias e das representações das quais participamos ativamente” (GUIMARÃES, 2019, p. 71).

Logo, questionar, duvidar, conhecer, aprofundar-se (isto é, não permanecer na superficialidade) ter ciência do real e não se envolver no estereótipo circundante do convencional e das banalidades refletem atitudes de ruptura do ciclo da banalização do mal. Para tanto, requer-se o enfrentamento do mal pela reflexão e pelo senso crítico sobre a realidade, as estruturas sociais de manutenção do status quo surreal, percepção e compreensão das consequências das ações individuais.


Psicólogo André Marcelo Lima Pereira

Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com

REFERÊNCIAS

ANDRADE, M. A banalidade do mal e as possibilidades da educação moral: contribuições arendtianas. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 4, p. 109- 126, jan./abr. 2010.

 GUIMARÃES, V. O. S. A construção social acerca da banalidade do mal em Hannah Arendt. Temática, v. 27, n. 54, 59-72, ago./dez. 2019.

 SILVA, T. D. Mal, modernidade e pensamento em Hannah Arendt: Sócrates e Eichmann em perspectiva. 2013. 151 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2013.

XARÃO, J. F. L. Banalização da “banalidade do mal” de Hannah Arendt. Pensando – Revista de Filosofia, v. 8, n. 15, p. 296-314, 2017.

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