ARTIGO

A BELEZA E O IMPÉRIO DO DESEJO

A BELEZA E O IMPÉRIO DO DESEJO

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

E há ainda uma coisa peor do que ser feio – é ser feia! Quanto à mulher, a plástica é quasi tudo. Alguns dirão mesmo que é tudo. Aplástica é sua melhor virtude. A fealdade feminina provoca a blasphemia, e o mais forte argumento contra a idea de Deus: a existência de uma mulher feia repelle a Providencia divina. Contudo, porum paradoxo da razão humana, são em geral as feias que caem no mysticismo e se intitulam esposas de Deus. Coitadas! Si ellas não puderam ser esposas de homens [...]. (SALLES,1903, p. 8).

  Salles (1903) sacraliza a beleza das mulheres como um valor social importante e, ao mesmo tempo, como virtude e dom divino, requeridos como uma das exigências fundamentais no mercado matrimonial da época. Era necessário ostentar o privilégio de ser “bela” para merecer um esposo; em contrário, ser “feia” ou não ser “bela” abria caminho para o celibato. Segundo Beauvoir (1967, p. 167),o casamento era o destino tradicional da mulher determinado historicamente pela sociedade: “[...] para as jovens, o casamento é o único meio de se integrarem na coletividade e, se ficarem solteiras, tornam-se socialmente resíduos”.

Ser saudável é ter, em si, o próprio padrão de beleza. Cada um tem sua forma subjetiva de se perceber, sem necessidade de se comparar a outra pessoa para conseguir a auto afirmação, mas o que os “indivíduos veem como beleza somente é o físico, a aparência de uma boa saúde, um corpo malhado, uma pele jovem, cabelos hidratados, rosto bem cuidado, que transpareça um sistema padronizado” (ANJOS; FERREIRA, 2021, p. 596). O importante, porém, é sentir-se bem, e o corpo como ele se enfeita deve agradar primeiro a você, depois ao outro (FREITAS, 2019).Todavia, hoje, a mídia e os padrões de beleza requeridos instigam sua autoestima, e as transformações dos corpos pelo consumo (cirurgias, cosméticos etc.) objetivam a busca pela satisfação que, na maioria das vezes, vem acompanhada de angústias e rejeições se a resposta às pressões sociais não alcançar o padrão estético (ANJOS; FERREIRA, 2021).

A imagem corporal faz parte do mecanismo de identidade pessoal (CARVALHO et al., 2020), que tem uma construção mental multidimensional, mutável, e reúne pensamentos, comportamentos, avaliações e sentimentos relacionados ao corpo. É realizada pelo sujeito sobre seu corpo e envolve experiências acumuladas e imediatas; relaciona-se à esfera física, cognitiva e afetiva, pode refletir anseios e reações emocionais, autoconceito e autoestima, portanto, aspectos fisiológicos, sociais, afetivos, libidinais e experiência psicológica sobre a aparência e o funcionamento do seu corpo (NOGUEIRA; ALBUQUERQUE, 2021). Por ser construção mental, o indivíduo, porém, pode sofrer distorções da própria imagem corporal e a percepção de uma imagem real ou irreal que tem de si e do próprio corpo e gerar distúrbios psicológicos e fisiológicos sintomáticos.

O culto ao corpo vem desde a Antiguidade, preocupado não apenas por seus aspectos funcionais, mas muito fortemente por sua estética e um padrão de beleza ideal, considerado por Nogueira e Albuquerque (2021) como um propósito inatingível por ser artificial e utópico. Nas sociedades ocidentais, a prática se adensou, com pessoas externando preocupação exacerbada com a modelagem de seu corpo em busca de padrões de beleza estereotipados, impostos pela mídia e cobrados pela sociedade e pela cultura (COSTA, 2020), “uma ditadura da beleza”. Pode envolver desde prática de atividades físicas e dietas a cirurgias plásticas.

Os discursos que veiculam a preocupação com a beleza ocorrem em todas as classes sociais e faixas etárias, com foco ora na questão estética, ora na manutenção da saúde. A ditadura da beleza ocorre, mesmo que se reportem transtornos gerados dos valores violados devido ao padrão imposto pela sociedade. As redes sociais “implicam, diariamente, com a questão da autoestima [...], onde corpos bonitos estão à mostra e os conteúdos que passam a interessar, basicamente, são ligados à moda e beleza externa” (FREITAS, 2019, p. 5).

Pessoas obesas, por exemplo, são objetos de discriminação, estigmatização e preconceito devido à sua aparência, em que subjazem aspectos culturais e psicossociais. O uso de uma indumentária adequada ao corpo, por exemplo, incorporada à imagem do sujeito, pode distanciar e diferenciar-se de um padrão de tamanho, forma e beleza, gerar estados de tristeza, inferioridade, discriminação, ansiedade e depressão, alterações de humor e sentimento negativo com relação a si próprio. A aparência física e a beleza (ou ausência dela) afetam as relações sociais e exercem efeitos inter e intrapessoais, ou seja, a imagem corporal que o sujeito tem de si é criada em resposta ao meio em que vive (MARCELINO; PATRÍCIO, 2011).

Uma alternativa recorrente mais procurada para se alcançar o padrão de beleza ideal é a cirurgia plástica com finalidade estética que tende a apresentar resultados mais rápidos e evidentes, melhora a aparência física da pessoa, embora afete questões emocionais do paciente ligadas à autoimagem corporal. Esse tipo de cirurgia plástica (estética e reparadora ou reconstrutiva) visa “reconstituir ou reparar uma parte do corpo humano por razões médicas e estéticas” (ASSIS; SOUSA; BATINGA, 2019, p. 4), isto é, aprimorar a aparência de algumaregião do corpo do indivíduo (estética) ou corrigir alguma deformidade que ele apresente (reparadora).

O corpo é visto como o cartão de visitas (PINHO; BARBOSA, 2017), submetido aos ditames da moda, da saúde e da boa forma. O indivíduo procura meios de evitar a ação do tempo sobre ele. Muitas vezes, recorre a dietas questionáveis, intervenções estéticas e bariátricas e intervenções de beleza como auxiliar no tratamento das patologias decorrentes da obesidade, mas especialmente para que o sujeito se encaixe nos padrões estéticos estabelecidos pela sociedade sob a crença de melhor aceitação corporal. Especialmente os jovens, é comum recorrerem a dietas restritivas, ao exercício físico exagerado, ao uso de diuréticos e laxantes, de anabolizantes e cirurgias plásticas estéticas desnecessárias. Tais “comportamentos podem estar na gênese de transtornos alimentares como a anorexia nervosa, a bulimia e a compulsão alimentar, que podem comprometer, gravemente, a saúde dos jovens” (CARDOSO et al., 2020, p. 2770) e que se apresentam como as doenças mais comuns provocadas pela pressão social de manter o corpo magro.

O não atendimento aos modelos corporais propostospela mídia pode gerar descontentamento com a aparência, associado à discriminação e exclusão social e uma autoimagem negativa que dá sentidos de se ter o corpo doente, limitado e ‘teoricamente’ fora dos padrões vigentes do meio que cerca o sujeito. Marcelo e Patrício (2011, p. 4771) corroboram que os sentimentos de autodepreciação e baixa autoestima se relacionam à ênfase que a mídia veicula quanto à inadequaçãodo obeso aos padrões de beleza estabelecidos socialmente e à“representaçãoda pessoa obesa como não saudável”.

O ser humano vive constantes mudanças e, em determinadas circunstâncias, é coagido a materializar, no corpo, a idealização corporal (como magreza) imposta pela cultura, cria necessidades sociais acima das individuais e ocasiona a insatisfação corporal (CARVALHO et al., 2020). A mulher torna-se prisioneira de uma ditadura da magreza, fica vulnerável a doenças nutricionais, e preocupações com a aparência e insatisfações com o corpo refletem na saúde física e mental. No que tangencia a saúde mental de adolescentes, a supervalorização da aparência física pode carrear intensa violência psicológica (proveniente dos pares e familiares), mas não visível, associada a uma insatisfação generalizada em relação à aparência, pensamentos e sentimentos ‘negativos’ diante de si mesmo, afetando o bem-estar emocional e a qualidade de vida (NOGUEIRA; ALBUQUERQUE, 2021).

Entre os nichos de maiores vulnerabilidades sociais estão os adolescentes, que permitem à sociedade moderna, principalmente por meio da mídia, impor um padrão de beleza em que os “corpos magros ou musculosos e definidos são supervalorizados, sendo associados à beleza, sucesso e visibilidade social” (CARDOSO et al., 2020, p. 157). A adolescência, sobre a qual incidem as mais fortes influências da sociedade, mídia, família e amigos a respeito da escolha de um padrão de beleza (COSTA, 2020), se desenha como uma fase da vida que internaliza tais valores e ideais de beleza, com um corpo perfeito, padronizado (TÚLIO, 2015). Como resultado, assiste-se ao desencadeamento de “preocupação excessiva com a aparência e quadros de inferioridade e insatisfação com a imagem corporal” por aqueles indivíduos que não se encaixam no padrão criado e veiculado socialmente, cujos principais fatores de risco referem o desenvolvimento de depressão, ansiedadee transtornos alimentares (anorexia e bulimia) ou Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) por alimentos, devido à pressão e à cobrança da aparência e boa forma física (CARDOSO et al., 2020). O adolescente sabe, desde logo, o sentido das palavras “feio, bonito, beleza” e, para agradar, é preciso ser "bonita como uma imagem", isto é, “procura assemelhar-se a uma imagem, fantasia-se, olha-se no espelho, compara-se às princesas e às fadas dos contos” (BEAUVOIR, 1967, p. 20).

A adolescência é uma etapa do desenvolvimento humano com grandes transformações físicas, hormonais e psicológicas e, na visão que se tem do próprio corpo, projeta uma autoimagem corporal como elemento para estabelecer as relações sociais. O adolescente é constantemente influenciado pelo “ideal de beleza e padrões perfeccionistas impostos pela cultura, [e] a preocupação com a apresentação física e a aparência do corpo é um problema recorrente” (COSTA, 2020, p. 37): a preocupação urgente de ser magro é considerada mais importante do que a promoção à saúde e, para “atingir mais rapidamente o padrão de estética normativo, as garotas, principalmente as de 15 a 19 anos, recorrem a métodos mais rápidos de emagrecimento, como a bulimia” (TONELI, 2012, p. 161). Na busca pelo corpo perfeito ou aproximado do modelo padrão, preocupa a quantidade de jovens que passam por transtornos alimentares, geralmente influenciados pela mídia, TV, amigos próximos ou não, familiares, redes sociais, jornais e revistas.

A prática do culto ao corpo sofre profunda influência da mídia, que aponta como ideais “os corpos esguios, abdomens definidos e músculos grandes, que estão na moda” por pura estética ou estilo de vida. É de se lamentar, porém, que,muitas vezes, as pessoas vivam “somente para isso, mantendo uma dieta muito restritiva aliada a uma prática de atividades físicas constantes [...]” e intensas, adiram aos “apelos da estética, como cremes, massagens, choques, bandagens, procedimentos invasivos e não invasivos e para manter ou transformar seu corpo, o modifica, buscando um cirurgião ou outro profissional de beleza” (ANJOS; FERREIRA, 2021, p. 596). Como grande parte dessa população não consegue esse ideal de beleza, ocorrem descontentamento e distúrbios alimentares e psicológicos

A pessoa enquadrar-se em padrões de grupo é uma necessidade humana, mas quanto mais desenvolve opinião própria e não se deixa levar pela aprovação dos outros para aprovar a si mesmo, maior será sua qualidade de vida.

 

REFERÊNCIAS

 

ANJOS, L. A.; FERREIRA, Z. A. B. Saúde estética: impactos emocionais causados pelo padrão de beleza imposto pela sociedade. Id onLine Rev. Mult. Psic., v.15, n. 55, p. 595-604, maio 2021.

 

ASSIS, P. R.; SOUSA, C. V.; BATINGA, G. L. Ditadura da beleza: corpo, identidade feminina e cirurgias plásticas. In: XXII SemeAd Seminários em Administração, de 6 a 8 de novembro de 2019, Universidade de São Paulo/FEA. Anais... São Paulo, FEA/USP, 2019. 14 p.

 

BEAUVOIR, S. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1967. 501 p.

 

CARDOSO, L. C.; NIZ, L. G.; AGUIAR, H. T. V.; LESSA, A. C.; ROCHA, M. E. S.; ROCHA, J. S. B.; FREITAS, R. F. Insatisfação com a imagem corporal e fatores associados em estudantes universitários. J Bras Psiquiatr., v. 69, n.3, p. 156-64, 2020.

 

CARVALHO, G. X.; NUNES, A. P. N.; MORAES, C. L.; VEIGA, G. V. Insatisfação com a imagem corporal e fatores associados em adolescentes. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 7, p. 2769-2782, 2020.

 

COSTA, E. F. (org.). Psicologia em foco: temas contemporâneos. Guarujá, SP: Editora Científica Digital, 2020. 217 p.

 

FREITAS, B. A. A percepção corporal do paciente após a cirurgia bariátrica. 2019. 25 f. Artigo (Graduação em Psicologia) – Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), 2019.

 

MARCELINO, L. F.; PATRÍCIO, Z. M. A complexidade da obesidade e o processo de viver após a cirurgia bariátrica: uma questão de saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 12, p. 4767-4776, 2011.

 

NOGUEIRA, M. Á.; ALBUQUERQUE, P. P. Adolescência e saúde mental: repercussões dos padrões culturais de beleza.Psic. Rev., São Paulo, v. 30, n. 1, p. 76-101, 2021.

 

PINHO, L. F. P.; BARBOSA, F. C. Ditadura da beleza: a cirurgia bariátrica como método de alcance do padrão corporal estabelecido pela sociedade. Revista Brasileira de Ciências da Vida, Sete Lagoas, MG, v. 5, n. 3, 11 jul. 2017.

 

SALLES, A. Reflexões sobre o feio (artigo). Correio da Manhã, seção Pingos e Respingos,1º de janeiro de 1903.

 

TONELI, M. J. F.Sexualidade, gênero e gerações: Continuando o debate. In: JACÓ-VILELA, A. M.; SATO, L. (orgs). Diálogos em psicologia social. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2012. 482 p. cap. 10, p. 147-167.

 

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