ARTIGO

O PACIENTE DIALÍTICO E O TRANSPLANTE RENAL

O PACIENTE DIALÍTICO E O TRANSPLANTE RENAL

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 2 anos

O crescente envelhecimento da população e o aumento da expectativa de vida e fatores de risco tradicionais (hipertensão, diabetes, doenças cardiovasculares) têm contribuído para alterar o perfil de morbimortalidade e expansão das doenças crônicas, entre elas a doença renal crônica (DRC), vista como um dos maiores desafios à saúde pública mundial (RIBEIRO et al., 2015). As estimativas apontam a prevalência de DRC (estágios 1 a 5) em 14,3% na população global (850 milhões de mortes/ano) e 36,1% em grupos de risco (CASTRO et al., 2020; SILVA et al., 2020), com ostensivos impactos na qualidade de vida do paciente (BATISTA et al., 2017).

No Brasil, em 2018, o número estimado de novos pacientes em diálise foi de 42.546, aumento de 54,1% em relação a 2009. Em julho do 2018, a estimativa total de pacientes em diálise foi de 133.464 e taxa bruta anual de mortalidade de 19,5%. Dos pacientes prevalentes, 92,3% estavam em hemodiálise, com cateter venoso usado como acesso em 23,6% dos pacientes em hemodiálise e 7,7% em diálise peritoneal, e 29.545 (22,1%) em fila de espera para transplante. A manutenção dos tratamentos e das clínicas ou centros que assistem pacientes DRC é feita pelo SUS como principal fonte pagadora (80% em 2018) (NEVES et al., 2020).

Garcia (2020) ressalta que, no primeiro trimestre de 2019, houve redução na taxa de doadores efetivos para transplantes de rim na ordem de 18,4% por milhão da população (pmp), caindo no semestre de 2020 para 15,8 pmp, devido principalmente à suspensão das atividades de grande parte dos serviços para evitar que o doador corresse o risco de contrair Covid durante a internação para o procedimento eletivo. O número de transplantes renais entre janeiro e junho de 2020 atingiu um total de 2.409, com 218 doadores vivos, 2191 falecidos, envolvendo 118 equipes (GARCIA, 2020).

O transplante renal, no Brasil, atende a média de 30% do total das pessoas que aguardam em fila por este órgão (BATISTA et al., 2017). A lista única de espera resulta do desequilíbrio entre demanda e oferta de órgãos, devido a fatores diversos: resistência das pessoas em doarem órgãos por motivos religiosos, falta de informação ou conhecimento, tipo de atendimento hospitalar durante a internação, medo de o doador ser negligenciado após a doação, sendo o “principal fator limitante à realização do transplante [...] a carência de órgãos para atender ao número de pacientes portadores de DRC com indicação do procedimento” (CAMPOS et al., 2017, p. 408).

A doença renal crônica, em seu estágio inicial, não “apresenta manifestações clínicas e, por isso, as pessoas somente procuram as unidades de saúde já na fase terminal da doença” (CASTRO et al., 2020, p. 1). Descoberta a doença, o paciente passa a ter limitações, e os rins não conseguem mais filtrar o sangue como deveriam (ROCHA; BARATA; BRAZ, 2019, p. 2). A DRC é caracterizada por lesão renal e alteração da função renal (perda ou redução da taxa de filtração) e tem sido reportada como um dos principais determinantes de risco de eventos cardiovasculares. Uma DRC não decorre, necessariamente, do aumento do número de doenças intrinsecamente renais, mas é determinada pelo acúmulo de fatores de risco e doenças sistêmicas secundárias que lesam os rins, como a doença aterosclerótica, diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica e outras doenças hipertensivas, acidente vascular cerebral e doenças correlatas (ALCALDE; KIRSZTAJN, 2018; CASTRO et al., 2020), sobrepeso ou obesidade, dieta e estilo de vida, tabagismo e consumo de álcool, uso de agentes nefrotóxicos, histórico de doença do aparelho circulatório e DRC na família, idade avançada (idosos), decorrentes da transição demográfica observada nas últimas décadas (BRASIL, 2014).

O estágio final da DRC é denominado insuficiência renal crônica terminal (IRCT), quando o paciente necessita de terapia renal substitutiva (TRS). Uma insuficiência renal crônica (IRC) resulta de processos patológicos que causam uma lesão irreversível nos rins que se tornam incapazes de eliminar os resíduos tóxicos do organismo e manter o equilíbrio hidroeletrolítico. A modalidade principal de tratamento é a “hemodiálise que consiste na purificação do sangue semanalmente através de uma máquina externa ao organismo”, isto é, eliminação de substâncias nocivas do organismo, que se acumulam na corrente sanguínea. Por isso, a “qualidade de vida relacionada à saúde deve ser avaliada, em virtude das condições clínicas e evolutivas da doença, que implicam em diversas mudanças fisiológicas e psicossociais em pacientes renais” (GOMES et al., 2021, p. 39752).

As relações sociais estão entre os mais relevantes fatores de risco à saúde, visto que a IRC altera todas as relações da pessoa doente e abala sua identidade. A fragilização acomete o sentido de vida e a capacidade de resolver problemas, traz desamparo e abandono diante do inevitável, suscita estados depressivos, desorganiza a cognição, a vontade, a capacidade de aprendizagem e as emoções. A DRC é incurável e, apesar de excelentes referências no aspecto fisiológico, há poucas referências sobre o aspecto socioemocional (MESTRE; BARBOSA; MESTRE, 2016).

Sesso et al. (2014) salientam que 91,6% dos pacientes em tratamento dialítico são submetidos à hemodiálise, sendo que o aumento da população com DRC implica crescentes e exorbitantes custos para as políticas públicas (FONSECA, 2018). O Censo Brasileiro de Diálise Crônica no Brasil estimou que o país gaste 1,4 bilhão de reais por ano com diálise e transplante (AGUIAR et al., 2020). No triênio 2013-2015, foram gastos R$ 2.539.900.634,06 para 13.804.574 procedimentos (hemodiálise e diálise peritoneal), incluindo pacientes pediátricos e portadores de HIV (ALCALDE; KIRSZTAJN, 2018, p. 3-4). Ribeiro et al. (2015) afirmam que a redução dos custos com a assistência hospitalar e institucional em diálise motiva a permanência dos idosos em seu domicílio, sob os cuidados de sua família, processo mais indicado.

Atualmente, O SUS financia mais de 90% dos tratamentos (cirurgias) de pacientes em terapia renal substitutiva (TRS) e transplante renal, caracterizado como a melhor opção terapêutica para pacientes com DRCT (fase terminal) sob aspectos médicos, sociais e econômicos: proporciona melhores resultados por diminuir a mortalidade, associa-se à redução de infecções e risco de eventos cardiovasculares, propicia qualidade de vida superior (BRASIL, 2014), favorece a reabilitação dos pacientes economicamente ativos e reduz custos à sociedade (CARMINATTI et al., 2021, p. 319). A sobrevida de pacientes de enxertos em longo prazo melhorou ligeiramente nas últimas décadas e é superior à oferecida por outras formas de substituição renal, com redução de custos. Atualmente, o Brasil detém o maior sistema público de transplante no mundo e mantém o segundo lugar em relação ao número absoluto de transplante renal (CAMPOS et al., 2017).

As principais razões que comprometem a sobrevivência da função renal em longo prazo são os riscos aloimunes, incompatibilidade do anti-antígeno leucocitário humano (HLA) no sangue do receptor, exposição a anticorpos específicos do doador, episódios de rejeição, fatores clínicos clássicos (endócrinos, hipertensão, proteinúria, anemia, diabetes, dislipidemia, distúrbios minerais ósseos e acidose metabólica) que contribuem para a progressão da DRC, notadamente após o primeiro ano pós-transplante, e fibrose renal como desfecho comum de inúmeros processos patológicos associados ao transplante renal, cuja ocorrência leva à progressão da doença renal e perda do enxerto (SOUSA; ZOLLNER; MAZZALI, 2020; CARMINATTI et al., 2021).

Após o início do tratamento, o paciente passa por mudanças no estilo de vida devido às condições clinicas e evolutivas da doença, com comprometimento dos níveis fisiológicos e psicossociais, com repercussões pessoais, familiares e sociais, em virtude de um “esquema terapêutico rigoroso com restrições hídricas e dietéticas que provocarão mudanças na sua imagem corporal”, além da dependência fisiológica de uma máquina para sobreviver, tornando o tratamento um processo cansativo, doloroso e estafante (MESTRE; BARBOSA; MESTRE, 2016; GOMES et al., 2021). Os impactos psicossociais podem levar a um progressivo e intenso desgaste emocional devido à duração do tratamento, limitações físicas, sociais, psicológicas, emocionais, e à falta de expectativa de cura (SIQUEIRA et al., 2019), comprometendo o bem-estar geral, a interação social e a satisfação do paciente (RIBEIRO et al., 2015).

O estado emocional instável, habitualmente presente no portador de DRC, influencia a confiança, a tomada de decisões e afeta a autoestima, autoimagem e autocompetência. Um paciente DRC vive em constante estresse (alarme, resistência, quase desistência e esgotamento), acentuando a cronicidade, a ansiedade (fuga, imobilidade, agressão, submissão) e estados depressivos. A mais drástica mudança ocorrida durante o tratamento refere abandono pela família, levando o indivíduo a isolar-se socialmente diante da percepção de que é rejeitado (MESTRE; BARBOSA; MESTRE, 2016).

As redes de apoio ao portador de DRC (família e parentes, amigos e vizinhos, outros pacientes, associações e clubes, equipe de saúde etc.) são meios eficazes para ativar recursos internos (cognitivos, comportamentais e emocionais) e externos, capazes de fortalecer o portador de DRC. Este conjunto de elementos potencializa atitudes positivas, reduz comportamentos de não enfrentamento da doença e da terapêutica e ajuda a superar as dificuldades (SIQUEIRA et al., 2019). Além das redes de apoio como suporte para o enfrentamento da enfermidade, é fundamental o atendimento psicológico para incentivar as pessoas a desenvolverem capacidades e verem a doença sob outros ângulos. Em geral, o DCR reporta história de vida que dificulta a adesão e o enfrentamento de sua patologia, e os mecanismos de enfrentamento dependem, ainda, dos recursos culturais, materiais, valores ou crenças, habilidades e apoio social de cada indivíduo. Todavia, além das limitações ou restrições impostas ao indivíduo pela DRC, é necessário considerar as perdas biopsicossociais enfrentadas por pacientes/ familiares de DRC e sua dinâmica de qualidade de vida (MESTRE; BARBOSA; MESTRE, 2016).

É importante destacar que os tratamentos para a IRC evidenciam um grande desafio imposto na concretização das estratégias de controle e prevenção, na conscientização pública, na qualidade e efetividade dos programas existentes na atenção primária e no grau de motivação, capacitação e educação permanente dos profissionais de saúde (SILVA et al., 2020). Como prevenção à DCR, a Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) sugere a adoção de hábitos alimentares saudáveis, consumo de água regular e prática de exercícios físicos, embora fatores genéticos devam ser considerados (ROCHA; BARATA; BRAZ, 2019).

 Ribeiro et al. (2015, p. 7504) sugerem que o paciente acometido por uma condição renal crônica e com incapacidades seja cuidado, preferivelmente, no ambiente domiciliar onde sempre viveu e adoeceu. Igualmente destacam o envolvimento e a participação da família e/ou amigos na prestação dos cuidados ao paciente dialítico, mas também “cabe ao profissional de saúde assumir uma abordagem de cunho participativo para suprir todas as dúvidas e medos que envolvem essa doença e seu tratamento”.


Psicólogo André Marcelo Lima Pereira

Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com

 REFERÊNCIAS

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