ARTIGO

PSICOLOGIA CLÍNICA: competências e atribuições do psicólogo clínico

PSICOLOGIA CLÍNICA: competências e atribuições do psicólogo clínico

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Por André Marcelo Lima Pereira, psicólogo

Publicada há 1 ano

O conceito de clínica em Psicologia evoluiu ao longo do processo histórico passando de um modelo essencialmente clínico liberal privado para um modelo plural de “práticas emergentes e acompanhou os movimentos de transformação social dos países” (FERREIRA NETO, 2010, p. 130). A Psicologia “foi sendo produzida, instituída, decomposta, questionada, problematizada e recolocada de diferentes modos”, segundo as demandas e interesses de cada época (ECKER, 2021, p. 51).

O modelo predominante na formação clínico-individual em Psicologia foi, até 1980, baseado em áreas de atuação: a Clínica com 45,45%, seguida pela do Trabalho com 26,79% e a área Escolar, 17,38%. Os conhecimentos teóricos ministrados nos cursos de Psicologia tinham um tratamento fragmentado e desvinculado da prática e da realidade do País, portanto, sem organicidade nos cursos, e a própria disciplina psicológica não possuía um corpo estruturado de conhecimentos devido à ênfase na carga horária de estágio, à pouca diversidade (apenas Clínica, do Trabalho e Escolar) e ao predomínio da área Clínica (MANCEBO, 1997). Em 1962, a Lei nº 4.119 (BRASIL, 1962), posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 53.464 de 1964 (BRASIL, 1964), dispôs acerca do ensino dos cursos de formação em Psicologia e regulamentou sua prática, contemplando três grandes áreas de atuação do psicólogo: a clínica, a escolar e a industrial. Os cursos de formação em Psicologia passaram a abordar disciplinas que, na organização de seus currículos, se concentrassem nestas áreas.

A clínica logo se estabeleceu como a mais nobre entre as psicologias e marcou intensamente o imaginário social da figura do psicólogo, sendo ele identificado com a condição de clínico (FERREIRA NETO, 2010). Desde o final do século passado e início deste século, ocorreu, no País, um aumento considerável das áreas de atuação da Psicologia, com ampliação gradual de seus locais de trabalho: o psicólogo tornou-se “presença cada vez mais constante nos sistemas de saúde pública, nos centros de reabilitação, nos asilos, nos hospitais psiquiátricos e gerais, no sistema judiciário, nas creches, nas penitenciárias, nas comunidades” (MOREIRA; ROMAGNOLI; NEVES, 2007, p. 616): ultrapassou, portanto, os tradicionais espaços de trabalho, restritos a consultórios, escolas e empresas. Merece destaque o fato que, na universidade, a psicologia clínica sempre foi aquinhoada com carga horária curricular maior nos cursos de graduação em Psicologia, elevada à atividade proeminente do profissional psicólogo: refere-se a uma área da Psicologia dedicada ao estudo dos distúrbios mentais, seus sintomas, causas, tratamentos e intervenções psíquicas (MEIRA; NUNES, 2005). Ecker (2021) expressa, porém, que abordagens teóricas divergentes e movimentos de construção de um conceito de clínica derivaram em multifacetadas formas de pensar o exercício clínico da profissão, resultando, segundo Birman (2018), em diversas propostas teórico-metodológicas, cujo discurso não se tornara homogêneo nem detinha uma simetria específica de sentidos.

A noção de clínica se relaciona à realização de tratamentos (TERRA, 2014), como uma especialidade profissional, ou seja, ação de tratar, que envolve um conjunto de procedimentos médicos em busca da cura de algum mal (sem especificar a ação da psicologia). Para Moreira, Romagnoli e Neves (2007) e Braga, Daltro e Danon (2012), o conhecimento médico influenciou a evolução da Psicologia como teoria e prática, especialmente a noção de clínica, cujas repercussões legitimaram a Psicologia como ciência que envolve a escuta clínica, atividade clínica, observação clínica, histórias clínicas, método clínico, prática clínica, ato clínico, espaço clínico, exercício da clínica, experiência clínica, modelo de clínica, origem da clínica, clínica social, clínica em consultório, clínica psicológica, clínica psicanalítica, clínica freudiana, clínica individual, psicologia clínica, dentre outras.

A clínica em Psicologia vem disciplinada pelas resoluções do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que regulamentam sua prática no Brasil, sem apresentar a clínica com normatização jurídica única. Na Lei nº 4.119, de 1962, que dispõe sobre os cursos de formação em Psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo, os denominados “Serviços Clínicos” aparecem no Art. 16 e a “Psicologia Clínica” no Art. 19, sem especificar o conceito ou a noção de clínica (BRASIL, 1962). Na Resolução CFP nº 014/00, de 2000, que institui o título profissional de especialista em Psicologia, a Psicologia Clínica é descrita no Art. 3º como uma especialidade (CFP, 2000). Essa resolução foi alterada pela Resolução CFP nº 02/01, que incluiu a atuação do psicólogo especialista em Psicologia Clínica (CFP, 2001). A Resolução CFP 003/07 consolidou as resoluções do Conselho Federal de Psicologia, caracterizou a profissão, ordenou a formação e funcionamento dos conselhos regionais de Psicologia, disciplinou os registros profissionais e de pessoas jurídicas, o exercício profissional e estágios de aprendizagem, entre outras matérias (CFP, 2007).

Segundo o CFP (2001), o psicólogo clínico atua na área específica da saúde em diferentes contextos, por meio de intervenções (individuais, grupais, sociais ou institucionais) que visam reduzir o sofrimento do homem, considerando a complexidade do humano e sua subjetividade. Tais intervenções implicam uma variada gama de dispositivos clínicos consagrados ou a serem desenvolvidos, em perspectiva preventiva, como de diagnóstico, ou curativa (CFP, 2001; ECKER, 2021). Sua atuação visa contribuir para a promoção de mudanças e transformações em benefício de sujeitos, grupos, situações e prevenção de dificuldades: “Atua no estudo, diagnóstico e prognóstico em situações de crise, em problemas do desenvolvimento ou em quadros psicopatológicos, utilizando, para tal, procedimentos de diagnóstico psicológico tais como: entrevista, utilização de técnicas de avaliação psicológica e outros” (CFP, 2001, p. 12).

Nesse sentido, a Psicologia Clínica tem atuação ampla dentro da área da saúde, sem uma área específica, o que sugere diferentes interpretações, mas, essencialmente, visa intervir para reduzir o sofrimento, a crise, os problemas do desenvolvimento, dificuldades e quadros psicopatológicos, e prevenir, diagnosticar, curar, propor mudanças e benefícios, sem delimitar os critérios de certificação da cura ou benefício (CFP, 2001). Na atualidade, a Psicologia, como profissão, se desdobra em um sem número de especialidades focadas em contextos específicos como a psicologia educacional, a do desenvolvimento, a organizacional, a econômica e a do trabalho (LEAL; PIMENTA; MARQUES, 2012), embora a área de atividade com maior reconhecimento pelo senso comum tenha sido a Psicologia Clínica, mesmo que esta não corresponda, na realidade, a um tipo de Psicologia em um contexto particular. Todavia se reconhece que a expressão Psicologia Clínica tem um sentido próximo ao atribuído à medicina, isto é, um atendimento ao doente de forma individualizada, personalizada, prática; logo, a Psicologia Clínica surgiu fortemente vinculada ao modelo médico (TEIXEIRA, 1997).

O Catálogo Brasileiro de Ocupações (CBO) do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE) traz o registro “2515-10 Psicólogo clínico - Psicólogo da saúde; Psicoterapeuta; Terapeuta”, considerando a atividade em Psicologia uma ocupação, como subárea da família código 2515, que inclui a descrição mais abrangente de psicólogos (educacional, do esporte, hospitalar, jurídico, social, do trânsito, do trabalho, neuropsicólogo e psicólogo acupunturista) e psicanalistas. Também traz a descrição sumária da função de psicólogo para todos os profissionais da psicologia: “Estudam, pesquisam e avaliam o desenvolvimento emocional e os processos mentais e sociais de indivíduos, grupos e instituições, com a finalidade de análise, tratamento, orientação e educação; diagnosticam e avaliam distúrbios emocionais e mentais e de adaptação social, elucidando conflitos e questões e acompanhando o(s) paciente(s) durante o processo de tratamento ou cura; investigam os fatores inconscientes do comportamento individual e grupal, tornando-os conscientes; desenvolvem pesquisas experimentais, teóricas e clínicas e coordenam equipes e atividades de área e afins” (BRASIL, 2010, p. 347).

Assim, dentro de suas atribuições profissionais, o psicólogo atua no âmbito da educação, saúde, lazer, trabalho, segurança, justiça, comunidades e comunicação com o objetivo de buscar a cura e promover o respeito à dignidade e à integridade do ser humano. Teixeira (1997, p. 53) relaciona a Psicologia Clínica à “compreensão e intervenção nos problemas do homem, visando ao bem-estar individual e social e, nesse sentido, a atividade do clínico está popularmente vinculada à psicoterapia”. Atuando na área da saúde, psicólogo clínico colabora para a compreensão dos processos intra e interpessoais, com enfoque preventivo ou curativo, de forma isolada ou em equipe multiprofissional em instituições formais e informais; e realiza pesquisa, diagnóstico, acompanhamento psicológico e intervenção psicoterápica individual ou em grupo, por meio de diferentes abordagens teóricas (CRP16, 2022).

Segundo o CFP (2001), o CFP/MTE (2022) e CRP16 (2022), são atribuições do psicólogo clínico, dentre outras:

• realizar avaliação e diagnóstico psicológicos por meio de entrevistas, observação, testes e dinâmica de grupo, para prevenção e tratamento de problemas psíquicos;

• atender em psicoterapia individual ou em grupo conforme as faixas etárias, em instituições formais e informais de prestação de serviços de saúde (como creches, asilos, sindicatos, associações, instituições de menores, penitenciárias, entidades religiosas etc.) e consultórios particulares;

• orientar familiares ou casal, prestar acompanhamento psicoterapêutico;

• atender crianças com problemas emocionais, psicomotores e psicopedagógicos;

• oferecer acompanhamento psicológico a gestantes durante a gravidez, parto e puerpério, procurando integrar suas vivências emocionais e corporais, e incluir o parceiro como apoio em todo o processo;

• prestar serviços em situações de agravamento físico e emocional, inclusive em período terminal, participando das decisões da conduta a ser adotada pela equipe (internações, intervenções cirúrgicas, exames, altas hospitalares);

• participar da elaboração de programas de pesquisa em saúde mental da população, adequar estratégias diagnósticas e terapêuticas à realidade psicossocial da clientela;

• criar, coordenar e acompanhar treinamentos em saúde em programas educativos em saúde mental na atenção primária, em instituições formais e informais;

• colaborar no planejamento das políticas de saúde e supervisionar atividades de Psicologia em instituições e estabelecimentos de ensino ou de estágio;

• com a equipe multiprofissional, identificar e compreender os fatores emocionais que interferem na saúde geral do indivíduo, em unidades básicas, ambulatórios de especialidades, hospitais gerais, prontos-socorros e demais instituições;

• facilitar a integração e adaptação do indivíduo à instituição;

• participar de programas de atenção primária em Centros e Postos de Saúde ou na comunidade;

• organizar grupos específicos para prevenção de doenças ou do agravamento de fatores emocionais que comprometam o espaço psicológico;

• participar da elaboração, execução e análise da instituição, realizando programas, projetos e planos de atendimentos, em equipes multiprofissionais, para detecção das necessidades, limitações, desenvolvimento de potencialidades do pessoal envolvido no trabalho da instituição, tanto nas atividades fim, quanto nas atividades meio;

• contribuir para prevenção, tratamento e inserção do indivíduo na sociedade.

Na atuação do psicólogo clínico, algumas reflexões, questionamentos e inquietações emergem, à medida que a Psicologia evolui em seu alcance para além do atendimento clínico tradicional, na perspectiva de novas demandas e requisições da modernidade feitas ao psicólogo. São desafios que incluem a competência na assimilação do novo, o exercício de pensar o ambiente social moderno complexo, a atuação dentro do sistema com novo paradigma: uma visão da clínica psicológica ampliada, como ação social e preparação dos psicólogos para atuarem em diferentes contextos (LIMA; MACEDO; CERVENY, 2015). São necessárias uma sólida formação teórica e técnica e a aquisição de um conjunto de estratégias a serem empregadas nas intervenções diárias, nas atitudes apresentadas na relação com os pacientes em diversas situações próprias ao contexto de trabalho, preponderando a dimensão ética nesta relação, com fundamentos na consolidação de uma atitude permanente que impede as transgressões éticas (TOZO; TRIGINELLI, 2019).

Deve-se relevar que o desenvolvimento de novas competências por parte dos profissionais psicólogos, em destaque o clínico, se confronta com a prática e destaca a necessidade de uma formação ampla que contemple as novas demandas da clínica ao acolher o social e o individual. O psicólogo clínico trabalha, ao mesmo tempo, com a vulnerabilidade do indivíduo, com as instituições e com a saúde pública, o que reporta uma condição única da sua atuação na saúde: a psicologia clínica é, ao mesmo tempo, um fazer individual e social e faz vislumbrar uma clínica ampliada.


Gostou do artigo? Tem alguma dúvida? Alguma crítica? Ou sugestão de tema para novos artigos? Entre em contato

Contato:WhatsApp 17 99715-9136

REFERÊNCIAS

BIRMAN, J. Genealogia da clínica. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 21, n. 3, p. 442-464, set. 2018.


BRAGA, A. A. N. M.; DALTRO, M. R.; DANON, C. A. F. A escuta clínica: um instrumento de intervenção do psicólogo em diferentes contextos. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, Salvador, v. 1, n. 1, p. 87-100, dez. 2012.


BRASIL. Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sobre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo. Diário Oficial da União, de 5.9.1962, retificado em 10.9.1962. Brasília, SF, Presidência da República, 1962.


______. Decreto no 53.464, de 21 de janeiro de 1964. Regulamenta a Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962, que dispõe sobre a profissão de psicólogo. Diário Oficial da União, de 24.1.1964. Brasília, DF, Presidência da República, 1964.


______. Ministério do Trabalho e Emprego (TEM). Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). 3. ed. Brasília: MTE, PPE, 2010. 828 p. (v. 1).


CFP – Conselho Federal de Psicologia. Resolução CFP nº 014/00, de 20 de dezembro de 2000. Institui o título profissional de Especialista em Psicologia e dispõe sobre normas e procedimentos para seu registro. Brasília, DF: CFP, 2000.


______. Resolução CFP nº 02/01. Altera e regulamenta a Resolução CFP nº 014/00 que institui o título profissional de especialista em psicologia e o respectivo registro nos Conselhos Regionais. Brasília, DF: CFP, 2001.


______. Resolução CFP 003/07. Institui a Consolidação das Resoluções do Conselho Federal de Psicologia. Brasília, DF: CFP, 2007.


CFP/MTE – Conselho Federal de Psicologia e Ministério do Trabalho e Emprego. Atribuições profissionais do psicólogo no Brasil [Internet], 14 nov. 2022. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2008/08/atr_prof_psicologo.pdf. Acesso em: 14 nov. 2022.


CRP16 – Conselho Regional Psicologia da 16ª Região / Espírito Santo. Catálogo brasileiro de ocupações do Ministério do Trabalho. Disponível em: https://crp16es.files.wordpress.com/2014/01/cbo.pdf. Acesso em: 12 nov. 2022. 


ECKER, D. D. I. Pensando a noção de clínica empPsicologia no Brasil: clínica, clínico, terapêutico e terapêutica. Conhecimento & Diversidade, Niterói, v. 13, n. 29, p. 50-62, jan./abr. 2021.


FERREIRA NETO, J. L. Uma genealogia da formação do psicólogo brasileiro. Memorandum, v. 18, p. 130-142, abr. 2010.


LEAL, I.; PIMENTA, F; MARQUES, M. (coords.). Intervenção em psicologia clínica e da saúde: modelos e práticas. 1. ed. Lisboa: Placebo Editora, 2012. 239 p.


LIMA, M. J.; MACEDO, R. M. S.; CERVENY, C. M. O. Novas demandas para o fazer do psicólogo clínico no encontro com o social. Bol. psicol., São Paulo, v. 65, n.142, p. 45-58, jan. 2015. 


MANCEBO, D. Formação do psicólogo: uma breve análise dos modelos de intervenção. Psicol. cienc. prof., Brasília, v.17, n.1, p. 20-28, 1997. 


MEIRA, C. H. M. G.; NUNES, M. L. T. Psicologia clínica, psicoterapia e o estudante de psicologia. Paidéia, v. 15, n. 32, p. 339-343, 2005.


MOREIRA, J. O.; ROMAGNOLI, R. C.; NEVES, E. O. O surgimento da clínica psicológica: da prática curativa aos dispositivos de promoção da saúde. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 27, n. 4, p. 608-621, dez. 2007.


TEIXEIRA, R. P. Repensando a psicologia clínica. Paidéia, Ribeirão Preto, SP, FFCLRP, p. 51-62, fev./ago. 2007.


TERRA, E. Dicionário da língua portuguesa. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Editora Rideel, 2014. 1152.


TOZO, S. M. P. S.; TRIGINELLI, M. F. M. Clínica-escola de psicologia: espaço de formação acadêmica e ética. Pretextos - Revista da Graduação em Psicologia da PUC Minas, v. 4, n. 7, p. 77-92, jan./jun. 2019.


últimas