Uma das coisas mais estúpidas que alguém pode fazer na vida é sentar numa mesa de granito sem suporte ou reforço. Eu sentei numa mesa de granito sem suporte ou reforço.
A crônica quase sempre é algo pessoal do cronista — seu umbigo, com flunfa e tudo — e é bom que às vezes seja uma experiência forte. Quebrar a mão é uma experiência forte.
Tenho o costume de ficar semanas com a mesma música no carro. Na época era a 5ª do Bê. Foi o fatídico dia 28/01/2016. Pra começar bem o ano.
Chegando em casa de tardezinha, lá fui eu ao meu escritório, onde o Zé, meu pedreiro, assentava uma peça de granito na minha estante. Como olhar pessoas trabalhando é mais fácil do que trabalhar, entreguei-me à conversa. O Zé tentando se concentrar no serviço. Meio escorado na minha tão querida mesa de granito enquanto falava, eis que surge ele: o meio segundo de bobeira.
Começa a Sinfonia nº 5 em Dó menor: Allegro con brio. Pã, pã, pã, pãããã!
Porque não chegou a dar um segundo. Foi um estalo só. O da mesa.
Em meio segundo de bobeira, o escorado — no caso eu — se sentou e, não sei por que, soltou sua leveza paquidérmica no granito indefeso. É claro que as leis da física me disseram: “Oi”. E eu fui ao chão. Com a mesa. E metade dela caiu sobre a minha mão esquerda. E eu vi que isso não era bom.
O Zé, com o barulho, virou-se em minha direção e tentou entender a cena. (Convenhamos, não era algo fácil de compreender, especialmente para quem estava no chão, sob escombros.) Como quem não acredita no que vê e na estupidez do ato, me perguntou: “Você sentou na mesa?” Pois é. Sentei.
Andante con moto.
Depois de uma água rápida na mão — não limpou muito, confesso —, a dor assomando no horizonte, corri pra cozinha: gelo. A mão já estava latejando. E gritava: “Eu não acredito! Eu não acredito!” Enquanto acomodava o gelo num saco plástico e enrolava tudo com um guardanapo da cozinha, telefonei para minha Bella esposa. Pois, segundo detida análise e acurada interpretação, aquele “na saúde e na doença” jurado anos atrás incluía mão quebrada. E no preço da mão de obra o Zé não havia incluído serviços de primeiros socorros e ambulância.
Ao telefone, foi com bastante calma que eu disse:
— Bella, vem pra casa, que você tem que me levar pra santa casa.
— O quê?! O que aconteceu?!
Foi com bastante calma que eu disse:
— Bella, vem pra casa, que você tem que me levar pra santa casa. Não precisa correr, mas vem logo.
E desliguei. Nesse exato momento, já com sangue escorrido na camisa — eu disse que cortei a cabeça na queda? —, voltei ao escritório para tentar tranquilizar o Zé. Mas ele começou a girar.
— Zé, por que você tá girando?
— Eu não tô girando.
Xi... As vistas começaram a escurecer. Só então eu acreditei que não era o Zé que estava girando; e decidi que era melhor eu não desmaiar — minha pressão tem esse costume de baixar drasticamente quando vejo meu próprio sangue. “Não vou desmaiar, né?”, argumentei comigo mesmo. Afinal de contas, seria um baita exagero incluir nesta crônica a ambulância do Samu com sirenes e luzes na porta da minha casa.
Scherzo, Allegro.
Na santa casa, a camisa ensanguentada ajudou. Fui direto pra emergência. Enfim: dois pontos no cocuruto, fratura do metacarpo do indicador da mão esquerda. Imobilização. (Fica o meu agradecimento a todos da Santa Casa de Fernandópolis: fui muito bem atendido.) Eu sentado numa salinha tomando soro. E a 5ª do Bê tocando — mas só pra mim.
Allegro.
Já em casa, um tanto chateado, fui ter com o meu anjo da guarda. Ele coçou a cabeça, olhou para o chão, para o teto e, ao final, confessou que estava fazendo uma boquinha naquela hora e, não soltando o lanche, esticou-me apenas uma das mãos. O que, óbvio, não era o suficiente para segurar esse peso que escreve. (Fiquei machucado, mas tive “sorte”.) Isso explica por que, afinal, o estrago não foi maior. Quebrei a mão, mas o osso fraturado ficou no lugar, retinho, de modo que escapei de cirurgia; fiquei só com o gesso.
A saúde — e principalmente a falta dela — põe tudo em perspectiva.
Uma mão quebrada — mesmo sendo a esquerda para alguém que é destro — atrapalha. Incomoda muita gente, especialmente quem precisa fazer as coisas para você.
Pois tente com uma só das mãos: dar nó na gravata — eu tinha uma formatura para ir dias depois —, pôr a meia no pé, lavar o braço sem gesso, enxugar a mão sã, abrir uma garrafa com tampa de rosca, cortar o bife no prato, abotoar qualquer coisa, afivelar o cinto, passar pasta na escova de dente, digitar no teclado do computador.
Na minha digitação de uma mão só, saíram inúmeras palavras em outras línguas, com destaque para alemão, polonês e sindarin.
Tomar banho só com logística de guerra: braço com saco plástico e para fora do alcance do chuveiro. Às vezes para cima até. Com o tempo, a mão e o antebraço sem lavar começam a coçar, parecem um alienígena na gente. E cheiram como tal.
Verdade seja dita, não sou referência de condicionamento físico ou boa forma, mas ultimamente tenho exagerado nas complicações ao meu projeto de chegar aos cem anos. Ando revendo as projeções de longevidade tanto quanto o governo as de crescimento do PIB brasileiro.
Há momentos em que dá vontade de deitar, dormir alguns meses e só acordar quando tudo tiver passado. Então, dizem: “Mas, se você fizer isso, vai perder o BBB...” Bem, há momentos em que dá vontade de deitar, dormir alguns meses e só acordar quando tudo tiver passado.
A lei de Murphy é absoluta: de vez em quando, a mão distraída bate em algum obstáculo do percurso. E a cada encontrão do dedo na porta, a cada esbarrão na mesa ou na cadeira, o espírito saía do corpo. E não voltava antes de alguns minutos.
E tem a vida social. É que todo mundo, claro, pergunta o que foi. Da versão original fui resumindo, até chegar na que mantive a maior parte do tempo: “Recusei-me a lavar a louça, e minha esposa me bateu.”
Sentado à mesa, o cotovelo apoiado e a mão engessada para cima — ângulo de noventa graus —, as piadas surgem: “Rau, homem branco?”, perguntam. “Não, não. Estou só abençoando o lugar em nome do Papa Francisco...”. Ou então cantam a música da Eliana: “Meus dedinhos, meus dedinhos, onde estão? Aqui estão!”
A crueldade humana não conhece limites.
Mas como desgraça pouca é bobagem, o circo da minha vida me guardava outra surpresa. Já me livrara, semanas antes, de uma birruga — a verruga é minha, e eu chamo como quiser — na sola do pé, região do calcanhar. Haveria retorno.
(Digressão compensadora: na sala de espera, depois de alguns minutos, percebi um senhor gargalhando. Eu lia o Quintana — lembra do Mario? — e tentei ver do que o homem ria. Na mão dele, então, pude identificar: Não Tem Erro, um livro de crônicas — meu único solo publicado. Valeu ter escrito. Só não sei de qual ele ria. Talvez da foto do autor.)
Na sala, minha dermatologista arregalou os olhos ao ver o gesso. Minha reação foi: “Melhor nem comentar, doutora...” E ela, depois de analisar os restos da minha excisão — que foi como ela chamou o procedimento de arrancar um pedaço do meu pé —, sentenciou: “Vamos ter que cauterizar o que sobrou...”
Como é que é? É.
Ganhei uma nova dor no pé. Com o braço engessado, saí mancando da clínica. Pratiquei o sacismo por mais umas duas semanas.
Durante a vida, todos vamos sendo quebrados, em pedaços menores, que é para ficar mais fácil de o fim nos digerir. Pois quem sai da vida muito inteiro irrita a morte.
O.A. Secatto
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