Poesia
Alberto Caeiro: da metafísica antimetafísica
Alberto Caeiro: da metafísica antimetafísica
O professor Lino Marfioli esclarece o engano comum de tratar Alberto Caeiro como o mais ‘simples’ dos heterônimos de Fernando Pessoa: ‘a poesia de Caeiro é altamente filosófica’
O professor Lino Marfioli esclarece o engano comum de tratar Alberto Caeiro como o mais ‘simples’ dos heterônimos de Fernando Pessoa: ‘a poesia de Caeiro é altamente filosófica’
Recomenda-se às pessoas que pretendem iniciar estudos de um autor complexo que se municiem com os “apetrechos” necessários e se acautelem, procedendo, à moda dos alpinistas, o acesso pelos “sítios” menos perigosos, menos íngremes, que permitem uma chegada ao cume evitando-se percalços desnecessários... Em se tratando de Fernando Pessoa é lugar-comum, conselho cediço, aquele que sugere o início da jornada pelo estudo de Caeiro, supostamente o mais “simples” dos heterônimos, com uma poesia fácil e acessível a qualquer pessoa. Quem assim o faz labora em erro crasso: a poesia de Caeiro é altamente filosófica, institui uma metafísica ao contrário.
O pensamento metafísico surge no ato de se subsumir que a contemplação jamais esgota a imanência do contemplado. Disso resulta a ideia de transcendência no objeto que, segundo essa visão, nunca é plenamente assimilável como algo inteligível. Justificam-se, assim, os conceitos de essência e aparência.
Quando digo que Caeiro inverte o pressuposto básico da metafísica — o de que as coisas são sempre muito mais do que parecem ser — quero aludir à sua atitude nominalista, que reduz a totalidade do objeto à exterioridade da coisa contemplada, e afirma obsessivamente que a transcendência exigida pela metafísica é um atributo do sujeito, um “defeito” do contemplante (a subjetividade) e não do contemplado (o real). Poderíamos dizer, de acordo com Caeiro, que se um homem nunca toma banho duas vezes no mesmo rio é essencialmente porque o homem não é o mesmo (em razão da impermanência que sua subjetividade lhe confere) e não porque o rio não seja o mesmo. Até porque — e é aí que a filosofia de Caeiro se revela uma metafísica reversa — o rio, para Caeiro, não é esse leito e essas águas, mas um ente abstrato, um universal que se afasta das contingências que marcam o objeto (e o diferenciam) quando de sua realização num particular. Caeiro, como bem observou Jacinto do Prado Coelho, não fala de rios reais, plantados na “objetividade” da vida concreta, mas de um ser abstrato, um conceito, uma súmula unificadora e totalizante. O que temos aqui? Um platonismo em Caeiro? Parece-me que não se trata disso; a atitude básica de Caeiro é a de atacar as “mentiras” do subjetivo, exigindo para o homem uma vida não de contemplação do mundo, mas de aderência ao que se lhe apresenta (“Pensar é estar doente dos olhos”). Para Caeiro, o “mistério” não está nas coisas contempladas, mas no fato de haver gente que admita a existência de mistério. Sua atitude representa um solapamento, uma condenação total da presunção maior da filosofia, que é a de conhecer, de “desbastar” uma por uma as camadas da subjetividade até atingir o esqueleto essencial daquilo que configura a realidade (e que, neste ponto, confina com as pretensões da ciência positiva).
Caeiro advoga, com intuição certeira, a tese de que a felicidade mora na inconsciência, no não-pensar (e aí aproxima-se bastante da filosofia oriental). O problema é que uma das pulsões básicas do humano é o bem-estar, os estados de prazer e desinquietação, e, no entanto, Caeiro postula que a consciência é fonte justamente do oposto: insaciedade, desilusão, desconforto. Repete essas ideias à exaustão: “O essencial é saber ver / Saber ver sem estar a pensar”, “Se eu pensasse nestas cousas, deixaria de ver as árvores e as plantas... entristecia e ficava às escuras”.
Caeiro é, aparentemente, o poeta materialista, objetivo, avesso a todo “filosofar”. Como sempre, ledo engano... Isso inscreve-se como atitude retórica no arcabouço conceitual de uma filosofia que parece negar-se como pensamento, como contemplação percuciente, e propõe-se como visão desarmada de entendimento, de racionalizações nefastas que nos tolhem o prazer da vivência ingênua e autêntica do mundo como fenômeno.
Mas o que se pode esperar de alguém que se diz “pastor” não de ovelhas, mas de pensamentos? Essas “fissuras” na figura da personagem são introduzidas de propósito, atendendo a uma necessidade (diria quase que exibicionista) de um poeta onde nunca se sabe bem onde pôr a primazia: trata-se de um poeta-pensador ou de um pensador-poeta? Curioso, muito curioso mesmo, porque configura um caso de junção de opostos: filosofia e poesia. Não quero, em momento algum, despojar a poesia (cujo objetivo maior é falar à emoção) da possibilidade de conter pensamento inteligível, com profundidade conceitual; o que é preciso demarcar é a inadequação da poesia para o tratamento rígido e sistemático dos universais que é, obviamente, objetivo da filosofia. O compromisso da poesia é com o enlevo, o encantamento; e o da filosofia com a clareza, a coerência estrutural das ideias para que formem um bloco monolítico com significações precisas. Daí o paradoxo da poesia de Caeiro como o de alguém que usa as vestes sacerdotais para condenar os crentes.
Caeiro representa em Pessoa a sua faceta heroica, solar, virada do avesso, uma tentativa hercúlea de realizar um impossível: a volta a uma vida primitiva, paradisíaca, onde o homem é feliz porque nada deseja além do nada que possui. Mas isso — é importante que se frise — não representa um retorno à Natureza (Caeiro esgrime com abstratos, seu pensamento é generalizante; se fala de árvores, nunca diz se são mangueiras ou pés de ipê; se fala de flores, nunca diz se são rosas, crisântemos ou margaridas...), sua pretensão, repito, é a de um retorno à Natureza como espaço mítico da inocência dos sentidos, anterior à queda e à maldição sofridas pelo homem por ter experimentado o fruto da árvore do conhecimento.
LINO MARFIOLI, ESTUDIOSO DE FERNANDO PESSOA, É PROFESSOR APOSENTADO