LITERATURA

A modernidade no discurso Machadiano

A modernidade no discurso Machadiano

Mesmo não tendo frequentado uma universidade, Machado de Assis foi um dos maiores gênios da literatura brasileira, antecipando vários procedimentos estilísticos que marcariam o início do romance

Mesmo não tendo frequentado uma universidade, Machado de Assis foi um dos maiores gênios da literatura brasileira, antecipando vários procedimentos estilísticos que marcariam o início do romance

Publicada há 7 anos

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Por Valdivino Pina da Silva


Filho de pessoas humildes, Machado de Assis não frequentou regularmente uma universidade, no entanto, foi tipógrafo, poeta, dramaturgo, contista, cronista, romancista, crítico literário, presidente da Academia Brasileira de Letras e um dos maiores gênios da literatura brasileira. Observador arguto da alma humana, fez com que sua obra assumisse uma posição transtemporal, ao mesmo tempo em que formalmente antecipou vários procedimentos estilísticos que marcariam, por assim dizer, o início do romance moderno. 


Em Memórias póstumas de Brás Cubas, abandona a postura de pacto social que assumiu na primeira fase (Ressurreição; Helena; A mão e a luva; Iaiá Garcia) e passa a pena para o “senhor”. 


Brás Cubas é um proprietário de escravos, um parasita social, de quem todos dependem, a partir do qual pode-se perceber que, antes e depois da escravidão, a sociedade brasileira estava longe de ser igualitária. Brás Cubas nasceu numa família abastada e sua formação foi determinada pela situação dessa família escravista (começa andando a cavalo em um escravo, um menino, que lhe deram para essa finalidade). Jovem, gastou uma fortuna com uma prostituta (Marcela); o pai envia-o à Europa para estudar. No entanto, o estudo é uma forma de obter apenas uma casca de civilização, conforme ele mesmo admite: “A universidade me atestou em pergaminho uma ciência que eu estou longe de trazer arraigada em meu cérebro”. De volta ao Brasil, teve um longo caso amoroso com Virgília, esposa de Lobo Neves. Quando o amor acaba e eles se separam, envolve-se em política, tenta a carreira científica (a criação do “Emplasto Anti-hipocondríaco Brás Cubas”) e morre antes de realizar qualquer dos projetos a que se tenha dedicado. Seu único ponto positivo, segundo afirma no último capítulo, foi não ter tido filhos, pois assim não transmitiria a ninguém a herança da sua miséria, como ser humano medíocre que foi. 


É a partir desse enredo que o narrador Brás Cubas fala do ser humano em escala enciclopédica: dos primórdios da humanidade até o final dos tempos, dos tempos bíblicos até a modernidade, passando pela Revolução Francesa. Reflete sobre filosofia, política, religião e arte, este último o elemento mais importante aqui, a nosso ver.  Enredo, no entanto, é apenas um pretexto para que Brás Cubas — um típico proprietário à maneira do século XIX, escravista, clientelista — antecipe através do seu discurso preceitos estéticos que marcariam a literatura moderna. 


A modernidade machadiana explicita-se nos seguintes elementos: quebra da linearidade (as ações não obedecem a uma sucessão cronológica, mas a uma disposição interior); metalinguagem (o narrador comenta com o leitor a escrita do romance, fazendo-o assumir uma postura ativa na elaboração da narrativa); digressões (o narrador interrompe a narrativa e divaga sobre os mais variados assuntos); ironia, humor negro (expõe a miséria física e moral de seus persona
gens); caráter não discursivo (o narrador abstém-se de discorrer sobre um determinado assunto, embora o faça explorando traços suprassegmentais ou a disposição gráfica das palavras, como nos capítulos “O Velho Diálogo de Adão e Eva”, “Epitáfio” e “De Como Não Fui Ministro D’Estado”); densidade narrativa (a ação e o enredo perdem importância para a caracterização dos personagens, uma vez que o menor gesto, uma fala são significativos na construção do quadro psicológico); sátira menipeia (presença de um narrador-personagem cínico, de um enredo disposto de forma não linear e de um filósofo que expõe a loucura humana, como é o caso de Quincas Borba). 


Convém lembrar, no entanto, que a linguagem machadiana não possui a oralidade, o coloquialismo e as incorreções gramaticais que marcaram o discurso dos escritores modernos, sobretudo os da “fase heroica” (1922-1930). Machado de Assis prima pela disciplina, pela concisão, pela correção gramatical. Diferente de Flaubert que defendia a teoria do “romance que se narra a si próprio”, o “Velho Bruxo” (expressão carinhosa de Drummond) intromete-se na narrativa, fazendo-nos perceber no narrador Brás Cuba as reflexões do escritor Machado de Assis. 


*VALDIVINO PINA DA SILVA, MESTRE E DOUTOR EM TEORIA DA LITERATURA, É PROFESSOR UNIVERSITÁRIO


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