ÓPERA

Ecos de Baveno

Ecos de Baveno

No ano em que se comemoram 180 anos do nascimento de Carlos Gomes, em Campinas, e 120 anos de sua morte, em Belém, por que em nenhum espaço no Brasil se faz uma releitura integral de sua obra?

No ano em que se comemoram 180 anos do nascimento de Carlos Gomes, em Campinas, e 120 anos de sua morte, em Belém, por que em nenhum espaço no Brasil se faz uma releitura integral de sua obra?

Publicada há 7 anos



Por Cleber Papa


"Guido..." Guido Oliviero completara 19 anos em 1869 e gostava de sentir sua voz rebater nas paredes íngremes das montanhas ao norte oeste de Baveno, na Itália. No trecho que liga Baveno a Feriolo algumas dezenas de cavernas eram familiares para ele. Ali, seu ofício era extrair as peças de granito rosa que ornamentariam residências, palácios e as mais variadas edificações luxuosas. O mesmo granito rosa característico da Galleria Vittorio Emanuele, próxima do Teatro Alla Scala, em Milão.

***

Várias vezes Guido saiu do trabalho ao final do dia seguindo a pé pela Strada Cavalli até cruzar a Via Scapellini. Gostava de caminhar pela estrada rústica observando à esquerda e abaixo o Lago Maggiore. Quando o tempo estava firme e se encontrava com Gigio, pegavam um pequeno barco e remavam até a Isola Superiore. O acordo era que remasse na ida e seu amigo na volta. Assim os dois poderiam observar o sol se pondo, ouvindo ao longe os sons da pequena vila de Baveno. Num desses dias, quando voltavam, Gigio parou o barco e com um gesto simples sugeriu que prestassem atenção nos sons de um pianoforte que soava ao longe. Mal sabia Guido que aquelas notas em pouco tempo ecoariam no Alla Scala, com a mesma força que seu nome nas montanhas de Baveno.


Carlos Gomes, maestro compositor, brasileiro, percutia no velho pianoforte, em Baveno, as primeiras notas do Guarany enquanto escrevia cartas e mais cartas para Carlo D’Ommerville, o libretista que concluía o trabalho iniciado e abandonado por Antonio Scalvini.

***

Sui campi insanguinati 

Di Nachod e Sadova 

Una fulminea prova 

L’arma terribile fa. 

Pif e Paf
De mille e mille stinti 

Elle non è mai pago 

Contro il fucile ad ago 

Non, più valor non v’ha. 

Pif e Paf


(Nos campos ensanguentados, 

De Nachod e Sadowa 

Em uma prova fulmínea 

A arma terrível faz 

Pif e Paf
Milhares e milhares de mortos 

Ele nunca se sacia 

Diante do fuzil de agulha 

Não, não conta mais a valentia Pif e Paf)

O fuzil de agulha foi uma inovação tecnológica na guerra de 1866, ao permitir a carga pela culatra da arma e não pela frente como era o modelo vigente. Esta arma dá nome a um dos números musicais (Il Fuccille ad ago) da revista musical Se Sa Minga de Antonio Scalvini, com música de Carlos Gomes. 


Tudo começou com a Terceira Guerra pela Independência da Itália. 


A quantidade e a relevância dos eventos que cercam mais esta tentativa de unificação da Itália servem muito bem às qualidades dramatúrgicas de Scalvini. Assim, o eixo dramático da revista está intimamente relacionado com os principais eventos da guerra em que a Itália se associa à Prússia contra o ainda invasor austríaco.

***

“Durante muitos séculos a península itálica foi um grupo fragmentado de estados. A invasão napoleônica trouxe algum arranjo temporário de relativa autonomia dos povos italianos, desfeito pela queda do império de Napoleão e a invasão pelas forças austríacas. Naquela situação, a península compunha-se do Reino do Piemonte e Sardenha, do Grão Ducado da Toscana, o Ducado de Parma, os Estados Papais e o Reino das Duas Sicílias, aí incluindo sua sede no Reino de Nápoles. Esforços mais concretos de uma unificação política e geográfica iniciam-se em 1846 levando, ao longo do século, ao arranjo final que hoje se conhece como a República Italiana. Preliminarmente, por força de negociações entre monarquistas e grupos republicanos, o Reino das Duas Sicílias e o Reino da Sardenha se unificam sob o comando de Vittorio Emanuele II, que vem a ser o primeiro rei da Itália parcialmente unificada. Os Estados Papais, incluindo Roma, continuavam sob o controle do Vaticano e apoio francês, não se reportando ao Rei. A Lombardia e a importante região do Veneto continuavam sob o domínio do Império Austro-Húngaro. Nesta mesma época, a Prússia também estava em busca da formação de um estado alemão unificado e, em 1866, com este intento, entra em luta com a Áustria. Uma vez que, neste cenário, a Itália e Prússia apresentam um mesmo inimigo comum, a Áustria, os grupos italianos que buscavam a unificação entendem o momento como favorável à sua luta. Assim, o Reino da Itália se associa à Prússia e desencadeia-se a Terceira Guerra pela Independência da Itália.”

***

“Em um relativo pequeno espaço de tempo muitas batalhas ocorreram entre as forças envolvidas. As mais importantes e decisivas delas foram a Batalha de Sadowa, também conhecida como Batalha de Königgrätz, crucial para a vitória da Prússia sobre a Áustria; a Batalha de Custoza, em que o exército austríaco, numericamente inferior, derrota o exército italiano; e a Batalha Naval de Lissa, uma clamorosa derrota da marinha italiana, com perdas significativas em homens e naves, mesmo sendo a armada italiana superior em número à austríaca.” (Se Sa Minga de Antonio Carlos Gomes: Contextualização Histórica — Marcos da Cunha Lopes Virmondi; Lucas D’Alessandro Ribeiro; Rosa Maria Tolon; Lenita Waldige Mendes Nogueira)

***

O ano de 1866 foi crucial para a vitória dos aliados e a conquista da Independência Italiana. Neste mesmo ano, Carlos Gomes se forma maestro compositor e, por alguma razão, Scalvini, um empresário e libretista bem-sucedido, o convida para compor a música da rivista musicale Se Sa Minga baseada nestes fatos e personagens. 


Em seguida, Carlos Gomes convida Scalvini para escrever o libreto de Il Guarany. Aparentemente Scalvini não se dedicou como Gomes imaginava. Isto provavelmente os levou a um afastamento. Muito embora em todas as partituras conste o nome do libretista, foi Carlo D’Omerville quem de fato encerrou o trabalho. 


No período em que permaneceu em Baveno trabalhando a composição de Il Guarany, Carlos Gomes escreveu muitas cartas a D’Omerville questionando, sugerindo e propondo, revelando muito do seu temperamento. Instável, entre submisso, respeitoso, irritado, nosso Selvagem da Ópera, como o chamou Rubem Fonseca.


Baveno, 8, 1869 

Caro Carlo 

Il duetto è fatto. 

Le prime strofe “Sento una forza indomita” mi hanno ispirato un’altra melodia che mi pare meglio di quella che sentisti...


E termina:


PS: La tua assenza da Baveno mi fa un male insopportabile, non posso rassegnarmene con tanta contrarietà.


Baveno, 26 agosto (1869) 

Caro Carlo 

Stava per scriverti quando ricevetti la tua carissima che rispondo ancora indeciso, ma che tu studierai ancora un poco, perché bisognamo prendere quanto prima una risoluzione! Il duetto tra tenore e donna nel I atto mi piace, ma ti faccio osservare che Pery nella pagina 10 esce rapidamente per arrivare prima di Gonzales... 

Non capisco perché tanta importanza alla scena della camera degli avventurieri che contiene due soli pezzi...


E, após concluir:


PS: Se tu avresti il coraggio di voler passare una giornata a Baveno, faresti cosa grandiosa e benemerita al tuo Gomes. Però essendoti proprio impossibile, ciao. Io sarò a Milano il 10 settembre, ma prima desidero aver qualche pezzo per lavorare...

***

E assim seguiu Gomes até este ano de 2016 em que se comemoram 180 anos do seu nascimento em Campinas e 120 anos de sua morte em Belém. Por que razões em nenhum espaço no Brasil se faz uma releitura integral de sua obra? Por que pouco se lembra de um compositor brasileiro que, além de nome de rua em duas cidades italianas, foi honrado com mais de 250 logradouros no seu próprio país? Por que é tão obscura a sua história e tão limitados nossos escritos a respeito dele? Por que é tão difícil falar deste criador que pouco sensibiliza quem de fato poderia investir na produção de sua obra? Por que é tão visível o desprezo inclusive na cidade em que nasceu? Qual o problema de, sem ufanismo, se estudar, enaltecer, rever, criticar, avaliar incansavelmente um autor de mais 140 canções, várias óperas, cantatas?


Se conoscere tu vuoi il valor di certi eroi Che dei fatti più minuti Qual fra noi sono avvenuti Tutto i ver ti si dipinga Rispondiamo... Se sa Minga
(Se queres conhecer O valor de certos heróis Que de fatos mais banais A nós acontecem Toda a verdade te seja desvendada Respondemos: Não se sabe!)


*CLEBER PAPA É DIRETOR, CENÓGRAFO, DRAMATURGO E PRODUTOR. É CRIADOR DA COMPANHIA DE ÓPERA CURTA


últimas