Jacqueline Ruiz

Cartas à Mãe

Cartas à Mãe

Por Jacqueline Ruiz Paggioro - Professora

Por Jacqueline Ruiz Paggioro - Professora

Publicada há 7 anos

Mãe te escrevo porque tenho a exata noção que alguns não compreendem meu traço (só a geração dos quadrinhos me compreende melhor), mas carta todo mundo sabe escrever – ou ler. Sei que você falou a minha vida inteira que era para eu parar de me enfiar nessas coisas de política. Mas é difícil viver com esse nó na garganta, essa coisa que a gente tem que conter. E ver esse povo passando necessidade e querendo melhorar e tendo que pedir por favor pra tudo, como se viver fosse uma dádiva dos poderosos. 


Acho que é por isso que eu desenho e escrevo estas cartas. Pra conter essa angústia e não me rasgar. E pra contrariar. o humor é a arma que escolhi.  Mãe, lembro que quando criança não gostava de estudar – me alfabetizei Deus sabe como! E por não poder apanhar, eu pintava e bordava. Morria de medo de morrer queimado no inferno e tentava um arranjo para pelo menos ir pro purgatório. Até que, na adolescência, o frei Matheus Rocha da Juventude Estudantil Católica, pra meu alivio, explicou que não existe fogo no inferno. o inferno é ausência de Deus. 


Então tudo bem, não tem perigo, queimar é que não dá! Em 1957, descobri o cinema autoral e a Nouvelle Vague no Centro de Estudos Cinematográficos de BH. Depois de trinta anos lancei meu único filme: Tanga (Deu no new York Times?), que disseram ser um filme com a cara do país: espontâneo, brincalhão e cruel. Sem heróis. Afinal, somos todos culpados! o roteiro foi “cartunizado”, à la Fellini. Fiz-me humorista à força, na Revista Alterosa com o nome de Henfil, o filho de Henrique. E criei os “fradins” – Baixinho e Cumprido – devido, principalmente, à perseguição política dos militares aos frades dominicanos e percebi que poderia atuar politicamente. (Igual ao meu amado irmão Betinho na Ação Popular.) 


Eles ressurgiram nos “Anos de Chumbo” com o lançamento do Pasquim. Dizem que meu traço é genial, que inspira movimento. Você sabe mãe, eu tinha receio de sair de casa. Quem ia lavar e passar minha roupa, fazer comida?!  Mudei pro Rio pra poder fazer o que eu sabia, e também pra ganhar mais e brilhar. Criei o Urubu, o Bacalhau, o Cricri  e o Pó de Arroz, tentando utilizar o futebol como uma linguagem de conscientização. Eu não queria fazer esporte em cima de times e de jogadores, então eu tinha que pegar a torcida, a personalidade da torcida. Preconizei a Paz nos estádios. E você me orientava contra os caminhos do mal. De menino a senhora cortava as fotos das mulheres de maiô de maneira que os olhos não vissem, pro coração não sentir. 


Deu certo, quer dizer, em partes, eu virei então o maior tarado em pés. Só de ver uma sandália eu entro em pecado original. E me apaixonei pela Gilda Cosenza. Ah, meus vinte anos e os pés dela! Diariamente minhas charges publicadas tinham um “G”. Conquistei-a. Depois vieram outros pés... A minha luta é tentar ser mulher. É conseguir ser afetivo, sonhar, dar carinho. Eu sou um soldado treinado pra guerra, sei ser cirurgião, mas não consigo ser enfermeiro. Apaixonei-me pela figura triste da Juliana, filha da minha cunhada presa, e não consegui ser próximo do meu próprio filho, o Ivan. Sou um homem do mundo, não nasci pra enfrentar a paternidade. Eu não sei falar e ouvir um homem, uma mulher ou uma criança. Eu só sei fazer coletivo, massa, povo, conjunto. Sou capaz de ser herói, mas não sou capaz de cuidar. Sou capaz de ser grande, mas não sou capaz de ser pequeno. 


Eu nunca dei uma flor. nunca amei uma pessoa. E tenho amor. Dou desenhos, dou textos, escrevo cartas. Sem contato manual, sem intimidade, sem entregar. Por que desenho, por que escrevo cartas? Minha arte é fruto da minha importância de viver com vocês. Um dia, vou rasgar o papel que escrevo, rasgar o bloco que desenho, rasgar até esse recado covarde e vou me melar e besuntar com vocês, tudo com meu grande beijo.


 Vocês vão me reconhecer fácil: vou ser o mais feliz de vocês. Com o Betinho no exílio me voltei para os mais necessitados e criei o Cangaceiro, que encarnava o espírito de luta do povo, a Graúna, minha única personagem mulher – que usei pra representar os problemas do Brasil (a desigualdade social, a indústria da seca) e o Bode Francisco de Olerana intelectual de gabinete, inspirado no bode (real) de meu amigo Elomar, que entrava em sua casa e literalmente comia os seus livros. não sou caricaturista, mas é fácil colocar o povo dentro dos quadrinhos e dos cartuns, porque o povo é o principal responsável por tudo o que existe aí.  Há certa passividade do povo brasileiro – que deixa as coisas acontecerem além da conta. Tenho mais vontade de cutucar o povo brasileiro – cada um de nós – do que de cutucar aqueles que estão por cima criando caso com o povo brasileiro. 


A macaquice nossa de imitar neve e imitar americano o tempo todo no vestir e no cantar... Depois do Rio de Janeiro, mãe, o que é que mais existe pra conquistar, pra crescer profissionalmente?  Estados Unidos. Lá eu descobri o Brasil! E também fui tentar um tratamento para a hemofilia. (Ah, mãe, lembra que quando eu nasci você ficou triste porque eu era um menino! Mais um pra viver o drama da dor.) Não me adaptei, me neguei a adotar o “baticum” deles. E o meu tratamento também não foi aquilo que esperava. I didn’t have Money. Voltei. Com a morte do Vlado criei o Ubaldo, o Paranoico, para denunciar o medo, o excesso de medo. E, à medida que a ditadura ia avançando, surgiram mais tipos – o Cabôco Mamadô, o Tamanduá Chupador de Cérebro –, para dar uma ideia do que estava acontecendo.


Fui embora pra natal. Queria ter contato com o pessoal do campo. o nordeste que eu descobri me chocou muito; na caatinga as meninas vestiam as roupas da moda e falavam os termos das personagens da novela. Decepção. Parti pra São Paulo então. Decidi ir pra lá devido à grande movimentação política e à mobilização do povo. Comunidades Eclesiais de Base de um lado, FIESP do outro, movimento sindical, greves... Me juntei com o Laerte – que havia me falado como estava legal fazer jornais sindicais – e com o Sérgio Gomes e fizemos o Jornal dos Metalúrgicos. 


 Fiz amigos com uma rapidez incrível. Ia à casa das pessoas e elas vinham à minha casa. Fazíamos programas Funarte (visitar museus, mostras, cinemas...) ou programas Funai – de índio – ( Praia Grande, comer pastel na feira...). Você sabe que eu não gostava da escola, mas comecei a escrever pra valer nas cartas pra ISTO É, em 1977. Aos 33 anos. E me realizo mais porque eu descubro mais coisas escrevendo que desenhando. Em 1978 a Revista do Henfil virou peça teatral dirigida pelo Ademar Guerra em prol da Anistia. no ano seguinte conseguimos trazer o Brasil pra dentro do Brasil; o Betinho – o tal “irmão do Henfil” da música do João Bosco – voltou!  Ajudei a fundar o Partido dos Trabalhadores. Entrei pra TV Globo, inserido no programa TV Mulher, num espaço chamado TV Homem, totalmente criado e apresentado por mim. Ganhei projeção nacional. E, ao entrevistar o admirável senador Teotônio Vilela para o Pasquim na luta pela redemocratização perguntei-lhe: E ai Teotônio, diretas quando? E ele: “Diretas Já!”. Criei o bordão que foi repetido à exaustão. 


O jornal é um serviço público, televisão é um serviço público, então estou a serviço do público. É uma espécie de eleição direta, principalmente no caso do humor, em que a gente é escolhido pela editoria; mas você não resiste três meses se não houver eleição direta, ou seja, se o leitor não te comprar. 


Sabe mãe, a sociedade do excesso é ruim e é infeliz, porque se você não tem nada ainda pra conquistar, o bom é sonhar. Meus textos e desenhos são ferramentas pra tentar driblar a censura dos meios de comunicação, a concentração de renda, o racismo, a compra de votos. A hemofilia me fez sofrer a dor e o descaso político com a saúde pública, me trouxe o HIV e a AIDS devido à falta de critérios para doação de sangue. Eu e meus dois irmãos fomos vitimas desse descaso, mas isso não vai nos impedir de lutar. Queremos justiça, igualdade e transparência. 


Somos homens inquietos que, apesar de lutarmos contra a morte a cada dia, não perdemos a fé, e, sonhadores, fomos condenados à arte e também à política: o Chico Mario com sua “conversa de cordas” tocou com sensibilidade incomum o Brasil lírico e político dos desvalidos; o Betinho com seu rigor de pensamento e sua ação popular em prol da solidariedade e da exclusão da miséria e da fome; e eu, com meu lápis, a palavra e as letras. nossa vida e nosso ideal provam que fomos capazes de construir um país de liberdade. Fizemos isso de forma critica e brincante, através da literatura, do desenho, da palavra falada e da música.


 Me perguntaram o que é humor. Humor? É inversão de expectativa. Eles querem que a gente morra. Ai a gente vai e vive. Isso é humor. Eu quero ser a mão do povo desenhando! Do seu filho, Henriquinho. 


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Henrique de Souza Filho, ou Henfil como se tornou conhecido, foi uma das maiores personalidades desse país. Denunciou os desmandos da Ditadura Militar através de seus cartuns e de suas curtas e filosóficas crônicas “Cartas da Mãe”. Lutou pela Anistia e viu os brasileiros voltarem pra casa. Lutou pelas Diretas Já! e não conseguiu votar pra presidente. Lutou pelo controle da comercialização de sangue e foi contaminado em uma transfusão. Morreu em janeiro de 1988 aos 46 anos. Questionado se tinha medo de morrer respondeu: “Medo? Eu tenho é raiva”. Se estivesse vivo hoje, teria 73 anos. Seus irmãos Hebert José de Sousa –o Betinho  (sociólogo e ativista dos direitos humanos no Brasil, concebeu e dedicou-se ao projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida) – e Francisco Mario de Sousa – o Chico Mario (compositor e violonista que desenvolveu  brilhante e premiado trabalho como compositor e instrumentista) –também contraíram o HIV em transfusões e também já faleceram.

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