CONTO

VAGAS PARA TEXUGO

VAGAS PARA TEXUGO

Para privilégio desta edição, que comemora o mês da mulher e o papel desta também na literatura, o Cultura! publica com exclusividade este divertido conto da premiada escritora Vanessa Barbara

Para privilégio desta edição, que comemora o mês da mulher e o papel desta também na literatura, o Cultura! publica com exclusividade este divertido conto da premiada escritora Vanessa Barbara

Publicada há 7 anos

Por Vanessa Barbara 



Nunca consegui levar o rato ao queijo. Não passava da primeira fase do Enduro e arrumava doença no dia de colar lentilhas no casco da tartaruga. Se minhas notas em comportamento sempre foram boas e as de higiene alcançavam o razoável — quando eu cortava as unhas —, repeti três semestres em coordenação motora. Sou aquela que hasteia bandeiras puxando a corda para o lado errado e honra o lábaro virada de costas. Até hoje não consigo usar uma tesoura sem perder o tampo de alguns dedos e arruinar o papel. (Alicate de unha, nem se fala.) 


Outro dia me perdi no Guia de Ruas entre o B5 e o D7, fui parar numa represa e nunca mais voltei. Por isso, quando o zoológico de São Paulo abriu 216 vagas — salários chegam a R$ 2.204 —, candidatei-me a texugo. Meus amigos preferiram concorrer para zebra (embora fosse obrigatório o uso de sunga), ariranha, leão-marinho e boto. Eu nunca passaria nos testes práticos, então marquei Opção Um: texugo diurno, Opção Dois: texugo integral. Para ocupar a jaula do texugo, diz-se, não é preciso ser bom em oratória, demonstrar desenvoltura na dança ou saber pegar fruta-pão com o rabo.


 Aliás, a vaga de texugo praticamente impõe uma condição: a falta de habilidade em todos os ramos da vida prática. Estava no edital: “Selecionaremos amadores em todas as áreas do conhecimento humano. A vaga consiste em não fazer nada em período integral, ou fazer tudo errado (quatro horas por dia). Os candidatos a texugo terão que comprovar incompetência absoluta nas áreas mais importantes da vida prática: pedicure, costura, salvamento de fogo, oratória e lógica elementar I e II. 


Responderão a um questionário falso/verdadeiro e farão um teste psicotécnico junto a palhaços de uma empresa especializada. Devem comparecer ao endereço deste edital munidos de currículo e uma piada de sua autoria. (Sugestão: O porquinho tinha uma perna só, foi se coçar e caiu.)”. Concorri à vaga com um sujeito que tinha fobia de leite, outro que não sabia ficar de cócoras e uma menina que se desequilibrava ao espirrar. Me saí muito mal nas provas de assovio, de encher bexigas e de aplaudir em geral, o que foi ótimo para a minha candidatura, mas acabei conseguindo distinguir a esquerda da direita, triste fato que me diferenciou dos demais concorrentes. Foi quando me lembrei daquilo que é uma de minhas maiores qualidades: cair. Não importa sob que circunstâncias, se estou parada ou tentando beber água, se estou com soluço ou sentada, eu sempre acabo caindo. Também costumo pisar no meu próprio pé quando danço, o que é invejável, eu sei, mas nada supera o hábito de cair sem motivo. Com isso, estou de volta à competição. Torçam por mim.


***


Eu já fugi de uma ovelha num campo de futebol, enquanto o resto do time aguardava o término do meu ataque de histeria. Quando pequeno, era atropelado por pneus com certa frequência, naquelas brincadeiras de rolar objetos cilíndricos ladeira abaixo. Eu não sei o que é um cilindro e perdi o compasso nos primeiros dias de aula. Lembro dos meninos menores de braços cruzados no campo, alguns se sentaram, e eu fugia em círculos de uma ovelha furiosa que balia atrás de mim, sim, furiosa, eu podia ver a maldade nos olhos da lanígera. Lembro do centroavante abaixando o meião e do goleiro tirando um cubo mágico das calças. Lembro do juiz deitado de barriga pra baixo tentando não morrer de rir e dos olhos da ovelha cravados em mim, as batatas das patas tremelicando conforme ela ganhava terreno em minha direção. Alguns dos jogadores já haviam comprado guaranás em lata quando a ovelha finalmente me derrubou, na meia-lua do campo adversário — segundo testemunhas, me deu umas lambidas. Cansou do meu gosto de medo e foi comer umas gramas. Eu não me lembro de nada. Fui direto para o pronto-socorro aonde me levaram quando fui atropelado por um pneu. Minha mãe apareceu na sala de emergência arrastando os pés, assinou os papéis da minha internação sem olhar e perguntou para o médico o que tinha sido daquela vez. Seu filho fez cocô no quimono, respondeu o instrutor de judô, por isso eu desisti de todos os esportes. Do boliche sobretudo, porque fiz um strike com a minha própria cabeça, antes de ser guilhotinado pelo recolhedor de pinos.


***


Alice gostava de girar em torno do próprio eixo até ficar muito tonta e entrar num vórtice temporal laranja. Alice Pai a puxava pelo pé e a rodava, rodava, rodava enquanto Alice Mãe gritava lá da churrasqueira: mas ela vai vomitaaaar. Alice acampava três vezes por ano e ficava muito assustada quando Alonso comia oito bananas na hora da sobremesa e girava até ficar muito tonto e vomitar o vórtice laranja da equipe deles, ou alguma coisa azul que tinham comido no almoço.


 Alice só estava autorizada a fazer o suco e a salada na cozinha dos acampamentos, para não se machucar, matar, derreter coisas caras, derrubar, derramar, esbarrar, enganchar, enfim, destruir em geral, então ela mexia a colher na jarra até ficar muito tonta e virar um liquidificador de oito velocidades, quatro vitaminas e ferro. O grito da equipe de Alice fora feito por ela e consistia basicamente em rodar e cair. Os adultos tentavam argumentar que aquilo não era um grito, vejam como estão em fila os meninos grandes, mas os amigos de Alice tinham curtido e não paravam de brincar de pião com os braços abertos. Quando perdia o eixo e se estatelava no chão, Alice pensava que se tivesse conseguido rodar mais um pouco viraria suco ou cairia nos braços do Alonso, que ainda não tinha parado de se entupir de bananas e estava redondamente apaixonado. 



* VANESSA BARBARA, AUTORA DE “NOITES DE ALFACE” E “OPERAÇÃO IMPENSÁVEL”, DENTRE OUTROS, É JORNALISTA, ESCRITORA E TRADUTORA, VENCEDORA DO PRÊMIO JABUTI. É COLUNISTA DO “NEW YORK TIMES”, TENDO ASSINADO COLUNAS DA “FOLHA DE S. PAULO” E DE “O ESTADO DE S. PAULO”



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