José Renato Se

Cinema Transcendental. O Dia em que a França e a Inglaterra fizeram as pazes

Cinema Transcendental. O Dia em que a França e a Inglaterra fizeram as pazes

Por José Renato Sessino Toledo Barbosa - Professor

Por José Renato Sessino Toledo Barbosa - Professor

Publicada há 6 anos

Estudante de Filosofia e bancário, namorava livros nas estantes das grandes livrarias. Felizmente, muitos estiveram ao meu alcance financeiro. Alguns...tinham de esperar.


Sempre tive paixão por livros e pela leitura. Quando o assunto é Filosofia, Literatura e Cinema, a devoção aumenta.


Recordo-me, certa manhã, em 1981, graduando de Filosofia, passeava pela Livraria Vozes, na Rua Hadock Lobo, travessa da Avenida Paulista – visita frequente –, deparei-me com uma obra cuja paixão foi arrebatadora e instantânea: Truffaut e Hitchcock. Uma entrevista que o jovem – à época – cineasta francês realizara com aquele que já se tornara a  instituição fílmica britânica. Um “tijolo” de mais de quatrocentas páginas. A capa – sempre um fetiche – trazia o rosto de ambos.

Conhecia – e era apaixonado – pela obra de ambos.


O empecilho? O preço.


Tinha outras urgências, não podia adquiri-lo naquele momento.


Deixei passar.


O livro nunca saiu da minha cabeça, nem de meu coração.


Anos depois, na verdade ano passado, procurava um livro para presentear meu amigo Gil Piva.


Morando em Fernandópolis, carente de grandes livrarias, a saída foi a internet.


Veio-me à memória a obra. Procurei-a. Encontrei.


Óbvio, não era justo dá-la a meu amigo e deixar-me na mão.


Comprei dois volumes.


A aquisição de livros, no meu caso, é um ritual: compra-se, mesmo sabendo que não sedispõe de tempo para lê-lo naquele momento. Fica guardado na pilha de prioridades. (Há uma fila de espera.)


Pois bem, a aposentadoria, o ócio, tinha a primeira obrigação: ler a obra referida.


Em dois dias, talvez três, li as quinhentas páginas.


Havia dito quatrocentas. Na verdade, ao comparar o livro tive um presente maior:  a última edição vinha acrescida de novo texto de Truffaut, conclusivo à entrevista. Nova tradução, primorosa, realizada pelo Professor Doutor Ismail Xavier da ECA-USP, com belo ensaio introdutório. Resumindo: era perfeito, ficou melhor.


A história do livro começa nos anos cinquenta do século passado. Truffaut era um dos brilhantes jovens críticos do fundamental “Cahiers du Cinéma”; criado e dirigido por André Bazin, juntamente com Éric Rohmer, Jean Luc Godard, Jacques Rivette e Claude Chabrol, todos decisivos na futura “Novele Vage”, movimento que revolucionou o cinema francês.


Coube a esses jovens críticos descobrirem aquilo que ninguém enxergara: Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Robert Aldrich, Nicholas Ray, dos Estados Unidos, Fritz Lang, austríaco, cuja carreira maior foi na América, Roberto Rossellini, italiano, Max Ophüls, germânico, Jean Renoir e Jean Cocteau, franceses e Kenji Mizoguchi, japonês, não eram apenas “cineastas comerciais”, ou menores, autores de “Filmes B”. Todavia, gênios da criação.


Graças ao “Cahiers...” e seus jovens críticos e futuros cineastas, todos esses nomes ocupam merecido lugar no panteão dos grandes e fundamentais nomes do cinema.


Em particular, o jovem Truffaut escancara sua exacerbada admiração por Hitchcock, apresentando-o como referência.


O livro narra a longa entrevista realizada pelo francês, em 1966, naquele momento um cineasta conhecido e respeitado, com Hitchcock, no período em que já usufruía do merecido prestígio e respeito comerciais. No entanto, faltava a consagração da crítica especializada, de maneira plena e definitiva.


A obra desenvolve-se a partir do diálogo dos mestres, acerca de cada um dos filmes, respeitando a cronologia. Perguntas e respostas sobre planos, enquadramentos, iluminação, roteiros e montagens. Além disso, evidentemente, o trabalho do diretor e dos atores.


É uma oportunidade única de conhecer Hitchcock cineasta, criador, seus medos, sonhos e desejos, através de seus filmes. Ao mesmo tempo que se escancara o perguntador, admirador, porém, lúcido crítico, Truffaut, que se mostra verdadeiro conhecedor da filmografia do britânico, não como mero apreciador, todavia, hábil “leitor” de seu trabalho, apontando de maneira corajosa e honesta desacordos e divergências, pontuando-os com elegância e astúcia, sem desmerecer o “mestre do medo”.


A conversa flui criativa, transborda genialidade e, sobretudo, conhecimento, paixão e amor pelo cinema.


É um daqueles livros cujo final, ao se aproximar, provoca dor e sentimento de perda. Enorme tristeza no momento da leitura da última frase.


Truffaut ainda redige considerações sobre os filmes posteriores de Hitchcock.


Reencontram-se durante uma cerimônia de premiação, em 1977, com Hitchcock muito debilitado e sua mulher e parceira – Alma – acometida de um derrame.


O cineasta francês comanda a cerimônia, naquele momento consagradíssimo, depois do belíssimo “Noite Americana” de 1973.


Sua narrativa é tocante, quando se refere a diva Ingrid Bergman, lendo homenagem a “Hitch”, também consumida pelo câncer.


A descrição se apresentou a mim como um plano geral, com cortes em close-up, sem música e som, de forma fúnebre, a descrever o fim de uma era. Se não naquele momento, como coisa de gênios, a leitura de porvir.


Tinham razão: o cinema atual é muito pequeno sem essas lendas.


Santé!




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