Carlos Eduardo

A Fome maltrata o corpo, humilha a alma e despedaça a autoestima

A Fome maltrata o corpo, humilha a alma e despedaça a autoestima

Por Carlos Eduardo Maia de Oliveira - Professor e Biólogo

Por Carlos Eduardo Maia de Oliveira - Professor e Biólogo

Publicada há 6 anos

            “Vi ontem um bicho, na imundície do pátio, catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem” (poema de Manuel Bandeira – poeta pernambucano, crítico literário e de arte, professor de Literatura e tradutor brasileiro).


            A fome de um povo é a expressão máxima da desigualdade social que assola um país.É a tradução da injustiça em meio à riqueza a que poucos têm acesso e com a qualmuitos apenas sonham com suas margens na esperança de obter, pelo menos, o necessário para viver com certa dignidade.


            Os relatos da fome no país vêm desde o século 16, especialmente de regiões mais pobres, como o Nordeste brasileiro. As autoridades do Brasil Imperial chegaram a demonstrar preocupação com a causa, tanto que é do imperador Dom Pedro II a célebre frase “Não restará uma única joia na Coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome”. O historiador e escritor Rodolfo Teófilo, um dos fundadores da Academia Cearense de Letras, publicou uma das mais realistas visões sobre a fome que assolava a população nordestina no final do século 19 – “A peste e a fome matam mais de 400 por dia! O que te afirmo é que, durante o tempo em que estive parado em uma esquina, vi passar 20 cadáveres: e como seguem para a vala! Faz horror! (...) E as crianças que morrem nos abarracamentos, como são conduzidas! Pela manhã os encarregados de sepultá-las vão recolhendo-as em um grande saco: e, ensacados os cadáveres, é atado aquele sudário de grossa estopa a um pau e conduzido para a sepultura".


            Como é de conhecimento público, muitas medidas foram tomadas para amenizar o problema da fome no Brasil e praticamente nenhuma surtiu efeitos consideráveis até os anos 2000. O resultado disso foi mais fome, epidemias, mortes e uma grande onda de migração do povo nordestino em direção às outras regiões do país. No caso particular do Nordeste, a grande seca que ocorreu entre os anos de 1979 e 1985 e que afetou uma área de 1,4 milhão de Km2 na regiãoagravou muito o problema da fome. Estimativas indicam que, naquela região do país, mais de três milhões de pessoas morreram de fome nesse período, especialmente crianças desnutridas.


            A boa notícia é a divulgação, em maio de 2015, do relatório global intitulado“Estado da Insegurança Alimentar 2015” (SOFI), publicado por três agências da ONU (Organização das Nações Unidas) – a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e o Programa Mundial de Alimentos (PMA). O grande destaque desse documento foram os avanços brasileiros na redução do número de pessoas em situação de fome, conquistados nos últimos anos. Entre os países mais populosos, o Brasil teve a maior queda de subalimentados entre 2002 e 2014 – expressivos 82,1%, fazendo com que o país tivesse menos de 5% da sua população em situação de subnutrição. No mesmo período, a América Latina reduziu essa quantidade em 43,1% (figura 01).


Figura 01: gráficos relativos à queda da fome em alguns países e regiões do mundo (Fonte: ONU – Organização das Nações Unidas, 2015). 



            Segundo o estudo, as causas dessa expressiva redução da fome no Brasil se devem à implantaçãodos programas de transferência de renda e de combate à fome (foram citados no documento, respectivamente, o Bolsa Família e o Fome Zero), o fortalecimento do poder aquisitivo das mulheres e a melhoria da renda da população mais pobre (entre 2000 e 2012, os rendimentos dos 20% mais pobres da população cresceram três vezes mais que os dos 20% mais ricos).


            Portanto, um fator está atrelado ao outro, pois se existe fome é porque existe desigualdade social e quando esta é combatida, a consequência natural é a diminuição da fome na população. E nem precisa ocorrer uma significativa diminuição na desigualdade social para haver uma queda importante no número de pessoas que passam fome em um país, pois o Brasil ainda continua sendo bem desigual (poucas pessoas concentram significativa parte da riqueza nacional).Recentemente, no dia 25 setembro de 2017, a Organização não governamental britânica Oxfam divulgou, em um relatório intitulado “A distância que nos une”, que os seis brasileiros mais ricos têm a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres, ou seja, metade da população brasileira.


            A propósito, as seis pessoas mais ricas do país são, de acordo com a prestigiada revista Forbes, Jorge Paulo Lemann (AB Inbev), Joseph Safra (Banco Safra), Marcel Hermmann Telles (AB Inbev), Carlos Alberto Sicupira (AB Inbev), Eduardo Saverin (Facebook) e Ermirio Pereira de Moraes (Grupo Votorantim) e, juntos, concentram uma fortuna estimada em 277 bilhões de reais.


            A fome é desumana e injustificável, seja qual for o motivo. Se a humanidade já conseguiu erradicar do mundo a varíola e alcançar a cura de várias doenças por meio da descoberta dos antibióticos e das vacinas, porque não varrer do planeta essa chaga? Só quem passou pela situação de senti-la um dia na vida sabe que não maltrata apenas o corpo, mas também humilha a alma e despedaça a autoestima.

 



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