HISTÓRIAS DO T

Nos tempos do 'Morro do Piolho'

Nos tempos do 'Morro do Piolho'

Por Claudinei Cabreira

Por Claudinei Cabreira

Publicada há 6 anos


No final da década de sessenta, o famoso “Morro do Piolho”, onde hoje é o bairro Corinto, era talvez, o canto mais temido da cidade. Tudo por conta da fama de alguns de seus personagens lendários, tidos e havidos como valentões, que moravam e reinavam absolutos naquela região de Fernandópolis. A presença do Cemitério da Saudade nas vizinhanças, ajudava aumentar essa fama e receio.O povo daquela época era supersticioso demais.


O “Morro” não era nada daquilo do que diziam ou ainda dizem. Era apenas um dos bairros mais pobres da cidade, onde a maioria absoluta dos moradores era formada por gente de bem, onde até os meninos pequenos, davam um duro danado defendendo uns trocos para ajudar no orçamento doméstico. No ano de 1958, quando minha família deixou a zona rural e veio para a cidade. Fomos morar ali, mais propriamente numa das casas da chácara do “Compadre Cecílio”, que ficava na rua Lavínia. Além da Dona Santa, eram também nossos vizinhos as famílias de João Amicucci e dos Bonfá. Na mesma rua, também morou a família Pinhel.

Naqueles tempos duros, a energia elétrica ainda não havia chegado por aquelas bandas da cidade. As casas do bairro, a maioria delas de taipas (de barro), eram prá lá de modestas. Mesmo as poucas casas de alvenaria, eram bem simples, sem forro e com o piso de terra batida. Lembro que minha mãe jogava água no chão e depois varria a casa com vassoura de piaçava ou guachumba.


Fogão a gás e geladeira, nem pensar. Eram luxos de gente abastada. Aliás, lá no “Morro” ninguém nem sabia o que era isso. Os alimentos eram preparados nos famosos fogões à lenha e nos grandes fornos de quintais.Lembro bem que a maioria das casas tinha seu “borralho” à lenha para assar pães e até peixes, sempre enrolados em folhas de bananeiras. Os meninos que estudavam e ainda trabalhavam fazendo um “bico”, durante uma parte do dia, faziam as lições de casa à luz de lamparinas. Lampião à gás era coisa meio que rara no bairro.


Mesada era coisa de filhinho de papai. Então, os meninos do “Morro do Piolho” se quisessem ter uns trocados, se viravam como podiam. A maioria tinha sua caixa de engraxar sapatos, outros juntavam alumínio, fios de cobre, ferro e papelão para vender nos ferros velhos do Guripa ou do “seo’ Guilherme Bim.A gente já fazia coleta seletiva, sem saber o que era meio ambiente.


Hoje em dia o pessoal da periferia vai para zona rural para trabalharno corte cana ou na colheita de laranjas. No nosso tempo, a gente ia “birolar”, apanhar algodão. Os adultos madrugavam, levavam suas marmitas e se empoleiravam nos caminhões dos “gatos”, que os levavam para grandes lavouras da região. A molecadinha, nas horas de folga da escola, ia para a chácara da Família Corinto, também trabalhar na colheita de algodão, que era plantado na área onde hoje é o Cemitério da Consolação.


Eram dias felizes. Lembro até que havia uma saudável disputa entre os meninos, para ver quem apanhava mais arrobas durante um dia. Sábado era dia de pagamento, então, com a “bofunfa” no bolso, a gente se sentia os donos do pedaço. Podia frequentar as matinês de domingo à tarde no Cine Fernandópolis, e até fazer algumas extravagâncias, comprando gibis e depois tomando vaca preta, igual gente grande, lá na Sorveteria Nosso Bar. A vida era dura, mas tinha lá também as suas recompensas.


Ao contrário do que se possa imaginar, nascer e viver no “Morro do Piolho” não foi uma desgraça,muito menos uma desventura. É verdade que a nossa infância não foi fácil, mas vivendo naquele ambiente de grandes dificuldades, mais tarde, essa experiência valeu a pena. Tudo que vivenciamos, para nós valeu como se tivéssemos passado por um rigoroso mestrado, um MBA na arte da sobrevivência. Aprendemos trabalhar com afinco, nos defender e negociar desde muito cedo, até porque, não havia outro jeito de melhorar de vida.


Para aqueles que tinham um objetivo na vida, o “Morro do Piolho’ foi uma ótima escola.Claro que nem todos que ali nasceram ou ali viveram sua infância, tiveram a mesma tenacidade, a mesma sorte. Não vou citar nomes, até porque acho isso uma invasão de privacidade, mas conheço e convivi com um monte de gente, que com esforço próprio, na raça, conseguiu ascender socialmente e hoje são pessoas bem sucedidas, respeitadas na cidade. A maioria deles, não nega sua origem, ao contrário, até diz com certa ponta de orgulho, que um dia foi da turma dos meninos do morro.


Assim como rendeu boas histórias de superação e sucesso, o Morro também teve seus dramas e suas tragédias. Era bem pequeno, mas me lembro do dia que uma cobra “Urutu Cruzeiro” picou o Pedro. Foi um alvoroço no bairro, porque todo mundo achava que ele não fosse sobreviver. Os meninos da nossa turma apostavam que o Pedro ia morrer. Naqueles tempos, havia a crença que uma picada dessa cobra era mortal. Pedro sobreviveu, mas com o tempo foi desenvolvendo uma série de seqüelas, a pior delas, uma paralisia quase que generalizada. Foi perdendo os movimentos e a fala. Ficou mais tarde conhecido como “Pedrão Aleijado ou Pedrão da Enxada”, que acabou imortalizado num quadro da talentosa artista plástica Ivani Saunders.


Mais ou menos na mesma época, o Nelson, um dos irmãos do Wamberto, que morava na Rua Lavínia, também foi picado por uma cobra Cascavel, nas proximidades da nascente do Ribeirão Santa Rita, nos fundos da Santa Casa. Igual o Pedrão, o rapaz também sobreviveu, ficando com uma seqüela que deixou uma perna atrofiada, menor que a outra, e por conta disso, ganhou o apelido de “Cascavel”. Se não me falha a memória, “Cascavel’ acabou se elegendo vereador nos anos setenta.


Os irmãos Jorjão e Olavão, junto com o Zé Crispim, eram os brabos do pedaço. Sempre se metiam ou arranjavam confusão e grandes brigas. Eram temidos, porque além de bons de briga, usavam armas perigosas como o “soco inglês” e cabos de aço, com uma bola de metal numa das pontas. Enfrentar ou questionar o comportamento de qualquer um deles, não era conveniente. Era mais ou menos como procurar chifre na cabeça de cavalo. Então, a gente deixava prá lá e todo mundo convivia em paz. Até porque, as confusões em que eles se metiam eram sempre com “gente de fora”, os forasteiros. Há muitas histórias, algumas hilárias, outras dramáticas. Um dia ainda volto ao assunto. Semana que vem tem mais. Até lá.




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