Por O. A.SECATTO
Já passara da meia-noite quando ele se levantou novamente. Não conseguia dormir. No escuro, foi tateando as paredes até a cozinha. Mais um copo d’água. Detestava perder o sono, especialmente porque isso estava se tornando mais frequente. Detestava isso também. Dormir cada vez mais tarde trazia consequências inevitáveis: perder parte da manhã de trabalho ou descansar menos — e trabalhar mal e com sono. E não lhe servia a noite; era sistemático, e lhe agradava o dia. “De nada serve a noite senão para dormir — ou para os inúteis boêmios. Preciso da boa luz do dia para escrever.” Voltou ao quarto para, finalmente, dormir.
Não era escritor, era calígrafo. Meticuloso e detalhista, era o melhor no que fazia. Seus trabalhos, por vezes, nem pareciam feitos à mão de tão perfeitos. Na paciência que sua arte lhe exigia, cuidava até da quantidade de tinta a cada vez que molhava a pena. Seus traços eram firmes, seguros e impecáveis. Em muitos dos trabalhos, fazia não só as letras, mas toda a arte e os desenhos também. Até mesmo os minúsculos e intrincados ornamentos do requadro de diplomas. Fazia valer cada centavo da enorme quantia que cobrava por cada peça: única como tal. Já não eram simples letras, mas obras de arte. Orgulhava-se disso. E de seus prazos: fora uma única vez por motivo de saúde, nunca descumprira um prazo prometido.
O sol já estava alto quando acordou. Levantou-se irritado por ter perdido a manhã. Já na sala, o cheiro de comida que vinha da vizinha lhe confirmou que dormira demais. “Cebola e alho fritos; já está na hora do almoço. Diacho.” Tivera pesadelos a noite inteira e, embora tivesse dormido muito, descansou pouco: sentia-se moído, com o corpo todo dolorido. Sentiu fome, mas voltou sua atenção à última encomenda.
Muito requisitado e com a reputação já consolidada, foi procurado pela principal universidade do país para um trabalho único como sua arte. Após uma longa procura, haviam encontrado o melhor pedaço de pergaminho de pele de carneiro. O contrato era seu para toda a arte. A peça devia ser tão primorosa quanto a ocasião.
Finalmente haviam, depois de longos anos, conseguido a confirmação da vinda de um celebrado e mítico professor estrangeiro. Para tanto, iriam conferir-lhe o título de Doutor Honoris Causa com o mais irrepreensível trabalho artístico de que dispunham: um diploma artesanal do melhor calígrafo da época.
Ele sentou-se diante do diploma na escrivaninha e acariciou com os olhos cada ínfimo detalhe do próprio trabalho, como o pai orgulhoso de sua criação. Tal qual Michelangelo diante de Moisés, desejou gritar “Parla!”. Era irretocável. Havia feito na última semana a arte e os próprios dizeres protocolares em latim. Como sempre, deixara apenas o nome para escrever por último, a coroação de uma obra-prima.
Uma súbita lembrança o tirou de sua concentração e o levou para um passado distante. “Lembro-me de cada um dos que me zombavam na escola. Imbecis! Sei que hoje precisam trabalhar uns bons meses do ano para conseguir o que ganharei com este único diploma...” E era verdade. Tais palavras, embora a princípio doces ao ego, deixaram-lhe um amargor na boca, que só se curou com uma imagem feminina já um tanto apagada, disforme. Lembrava-se de seu nome, porém seu rosto lhe fugia, numa teimosia que só o tempo é capaz de mostrar. Esboçou um sorriso, mas se deteve. Voltou ao semblante sisudo de sempre. As imagens se misturavam em sua memória, reproduzindo rostos indesejados da infância. Sempre fora quieto, recluso, calado. Tácito lhe cairia bem por nome. Mas não o era. Seu jeito tímido lhe causava problemas quase que diariamente na escola, pois era motivo de troça dos meninos mais velhos — e dos de sua idade também. Sua arte já dava pequenas mostras de vida, entretanto era singela demais aos seus padrões atuais. Vez ou outra a letra atraía as meninas para ouvir algum “Que lindo!” ou “Como você consegue?” e sentir-se menos ruim. Era um conforto efêmero, embora sublime enquanto durava.
Quando mais jovem, passou a chamar “insetos” àqueles que desprezava. Dizia a si mesmo, obviamente, vez que já estava cansado de levar tapas e croques dos mais fortes. E, por isso, desenvolveu uma voz baixa que persistiu até a idade adulta — outro reflexo da timidez. Desprezava seus agressores e zombadores para poder sentir-se superior. A palavra “inseto” há muito não usava, apesar de a imagem continuar em sua mente. De fato, após a adoção da palavra, passou por um incidente que lhe causou certo trauma. Foi atacado, segundo dizia, por um enorme besouro enquanto dormia numa noite de verão. A janela a mãe deixara aberta para arejar o quarto, mas também fez o convite ao imenso inseto. Ele pousou no lençol e nele grudou. O pequeno menino se assustou e, debatendo-se, não conseguiu se livrar do inseto, que involuntariamente lhe espetava as pernas com as patas. O episódio só terminou quando o pai veio e, nervoso por ter sido acordado por tão pouco, agarrou o besouro e o arremessou pela janela. O bicho foi embora e os pesadelos ficaram. E o atormentavam até pouco tempo atrás. Insetos!
Só trabalhava em seu escritório, mas o dia estava bonito, e ele sentiu vontade de escrever na varanda, como há muito não fazia. Improvisou-se na mesa com um suporte para o diploma e dispôs ao seu lado as penas e tintas. Abriu o recipiente da tinta vermelha, o tom mais vivo que tinha. Fez com extremo zelo a primeira letra do nome do professor, em capitular, no mais belo estilo gótico. Deixou a pena de lado e abriu o frasco da tinta dourada para os adornos da capitular; mergulhou a pena mais fina e se aprontou para aplicar o ornamento.
Quando punha a pena molhada sobre o papel, ouviu um zunido e um impacto discreto, mas não foi capaz de identificar onde. Correu os olhos pela mesa à procura de algo, nada encontrou. “O zumbido era de inseto com certeza...”, refletiu, pensando no besouro. Porém não quis crer que fosse possível. “Deve ter ido embora”, aliviou-se.
Pudesse estar certo. Pois foi acometido pela mais inesperada inércia diante do que viu. De início quis enfurecer-se, mas algo o serenou como que por mágica. Havia algo no vidro de nanquim que se agitava como se lhe valesse a vida, nada menos. Então, para sua surpresa, um bichinho saiu meio atordoado e cambaleou pela borda, todo dourado. Num gesto inesperado, ele pegou o inseto com delicadeza e o pôs sobre o pano usado de mata-borrão, de pernas para o ar. Deu-lhe algumas esfregadas, e cores foram reveladas: uma joaninha!
Ela se recompôs e pareceu fitá-lo. Com as patinhas alisou as antenas e, ainda suja de tinta, alçou voo para pousar ali perto. Desceu sobre o diploma para desespero dele, que novamente pareceu petrificar-se. Ela andou sobre a capitular vermelha e foi deixando seu rastro nela e ao redor. Patinhas tão pequeninas marcando o pergaminho com algo próximo a inéditos caracteres cuneiformes. Então, voou e, de novo, foi deixando aquele belo e minúsculo rastro dourado de suas patinhas. O coração dele já estava na boca, mas não se mexeu. Pela terceira vez ela alçou voo, para pousar a alguns centímetros dali. Caminhou como num curto semicírculo e parou. Pareceu olhar para ele, que não mais aguentou a singela beleza da cena e se entregou à pequena joaninha. Ela deu uma última olhada para ele — podia jurar que sim — e, por fim, voou para longe.
Seu coração estava agora tranquilo. Tudo ficara extremamente simples, sem neuras e traumas. Estava leve e sentiu-se de alguma forma reconfortado. Retornando a si, pôs a atenção no diploma. Já ia voltando à sua costumeira ranzinzice quando percebeu uma coisa. O pequeno rastro da joaninha pareceu manter a reta reservada ao nome. Adornou a capitular vermelha com motivos dourados, da mesma forma que já adiantara a parte das duas outras que faltavam. Sim, ele calculou o espaço e viu que daria nas exatas medidas. Ninguém via ou tocava seu trabalho até que estivesse realmente pronto. Só a joaninha conseguiu. Como também conseguiu reacender uma fagulha da bondade que estava presa e apagada num coração amargurado por uma vida inteira de perseguições, traumas e frustrações.
Alteou o rosto e mirou seu quintal com um pequeno jardim. Recordou-se do tempo em que tinha uns poucos amigos na escola — os que também eram caçoados por qualquer motivo. E de sua amada, tão pequena e delicada, com a pele morena e os cabelos castanhos e ondulados. Depois de tantos anos, seu rosto retornou. Ainda cedo, ela fora para longe, mas ele mantivera seu coração só para ela; e dedicou todo o seu tempo e todas as suas forças ao trabalho, à caligrafia, na triste tentativa de compensar sua falta. Fosse ele Dante, seria ela sua Beatriz.
A joaninha lhe trouxe novamente a ternura do rosto ainda infantil de sua amada. Sentiu-se enternecido uma vez mais. Um sorriso brotou, como o amor que ainda ardia. Único. Levantou-se e foi para o jardim numa leveza etérea. A tarde era de Beatriz, só dela.
Iria perder, agora, seu segundo prazo. Com muito gosto.