CINEMA
O GRANDE FILME
O GRANDE FILME
“Quando se fala em Stanley Kubrick imediatamente remete-se a 2001: Uma Odisseia no Espaço, Laranja Mecânica, O Iluminado, por exemplo. Filmado em preto e branco, O Grande Golpe reproduz o clima da
“Quando se fala em Stanley Kubrick imediatamente remete-se a 2001: Uma Odisseia no Espaço, Laranja Mecânica, O Iluminado, por exemplo. Filmado em preto e branco, O Grande Golpe reproduz o clima da
Por Zé Renato
‘O Grande Golpe’.Cena do filme de 1955
As coisas desprovidas de perenidade assim o são em face de pouca ou nenhuma importância. Ao passo que aquilo que significa, que é arte, permanece. Esse é o caso do filme O Grande Golpe (The Killing), produzido em 1955, lançado no ano seguinte.
Quando se fala em Stanley Kubrick imediatamente remete-se a 2001: Uma Odisseia no Espaço, Laranja Mecânica, O Iluminado, por exemplo. Poucos são aqueles que se recordam ou conhecem a película citada.
Filmado em preto e branco, referência direta aos filmes noir, a obra reproduz à maestria o clima dessa estética, com referências diretas a John Huston, Max Ophüls e Orson Welles. O primeiro diretor é visível, especialmente na cena final; remetendo-nos a O Tesouro de Sierra Madre, com Humphrey Bogart como vilão e seu pai — Walter Houston — como protagonista.
Em tempo: por “filme noir”, entendamos uma estética gestada no final dos anos 1930, a qual, durante os anos 1940 e 1950, foi muito marcante nos Estados Unidos. Filmes de detetives, com muito suspense e, sobretudo, com pouca iluminação, muitas vezes quase penumbra, planos americanos; enfim enquadramentos próprios dessa estética, cujos grandes diretores são: John Huston, Howard Hawks, Max Ophüls, Otto Preminger, por exemplo.
Curioso: os norte-americanos não viam nesse tipo de filme a caracterização de arte. Coube aos europeus, em especial aos franceses do Cahiers du Cinema — André Bazin, François Truffaut, Jean-Luc Godard, Éric Rohmer, Jacque Rivette e Claude Chabrol —, a primazia do reconhecimento dos valores estéticos e artísticos dos film noir.
Em particular, sabedor desse valor, Kubrick resolve reverenciá-lo. Produz uma película invulgar, a qual permanece rica e nova, após mais de sessenta anos.
Inovação parece-me o termo mais adequado. A narrativa não linear, o tempo e o espaço vão e voltam. Todavia, essas idas e vindas referem-se à história específica de cada um dos personagens, a fim de que nos coloquemos em seus lugares, seus dramas pessoais e subjetivos.
A obra é composta pelos elementos clássicos dos filmes noir: vilões fracassados, mulher fatal, uso do preto e branco para filmar e a figura do narrador em “voz de Deus”.
O golpe em questão é o roubo ao Jóquei Clube no dia de um grande páreo. A ideia de Johnny Clay — personagem do grande Sterling Hayden — é provocar o caos durante a disputa, para, enfim, realizar o roubo.
Para isso é necessária toda uma “engenharia”. Bilheteiro, barman, policial, atirador, um provocador de uma briga no salão de vendas das apostas e do bar.
Assim, Kubrick refaz a cena a cada história dos personagens, de acordo com sua óptica, seus dramas pessoais, com planos e enquadramentos geniais: travellings laterais nos cômodos dos apartamentos.
Em 1994, por exemplo, a narrativa não linear de Kubrick trouxe à cena Quentin Tarantino no antológico Pulp Fiction. Aliás, essa prática transformou-se em marca desse diretor.
Contudo, há outra importante e rica faceta da película em questão: personagens fracassados, com seus dramas cotidianos e pessoais: a esposa do barman sofre de câncer; a mulher do bilheteiro — a femme fatale — é interesseira, egoísta e o trai; pisa em seu doentio e rodrigueano amor; Johnny Clay — o líder do bando — esteve preso por cinco anos, em razão de pequenos golpes. Quer “meter a boa”; ficar rico e “aposentar-se para uma vida digna”; sua namorada é uma idiota, sem opinião, apenas executa as ordens de Clay; há o financiador do “esquema” — Jay —, o qual tem uma relação paternal com Johnny; o policial corrupto que deve para o agiota; bêbado, participará da trama; o atirador, um homem frio, calculista, e o homem contratado para arrumar a treta no bar, no momento em que o golpe se inicia.
Esse último a mim é o mais chamativo: é uma besta-fera, composto, aparentemente de músculos somente. Todavia, é dono das frases mais humanas e tocantes.
A ironia da cena final, o semblante de Johnny Clay, seu imobilismo, nos levam não ao final da película, porém a uma reflexão acerca da existência, da frágil e curta condição humana. Diferente da obra, rica e duradoura.
Bom filme.
Lendário.O diretor Stanley Kubrick