CINEMA

‘A FORMA DA ÁGUA’: A VITÓRIA DA FANTASIA E DA EMPATIA

‘A FORMA DA ÁGUA’: A VITÓRIA DA FANTASIA E DA EMPATIA

Oscar premia filme estrelado por uma muda, um artista gay, uma faxineira negra, um espião russo e um deus-anfíbio

Oscar premia filme estrelado por uma muda, um artista gay, uma faxineira negra, um espião russo e um deus-anfíbio

Publicada há 6 anos

Por BRUNO ANSELMI MATANGRANO 


Pureza. A faxineira Elisa (Sally Hawkins) e o homem anfíbio (Doug Jones) 



Não é segredo algum que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas americana tem dificuldade em lidar com obras de temática fantástica, favorecendo, sem quaisquer pudores, obras de cunho realista, histórico ou biográfico, salvo por raríssimas exceções, como a trilogia O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson. Foram treze indicações para A Sociedade do Anel (2001), seis para As Duas Torres (2002) e onze para O Retorno do Rei (2003), que com mérito venceram quatro, dois e onze prêmios, respectivamente, em um feito até então inédito e nunca mais repetido. 


Em outros momentos, mesmo quando são lembrados, como é o caso de Avatar (2009), de James Cameron, tais filmes acabam ignorados na hora da premiação (das nove indicações recebidas, Avatar só venceu em três categorias técnicas), pois a grande verdade é que filmes associados à fantasia, ao horror ou à ficção científica parecem ser um problema para a Academia, que, por hábito ou por gosto, sempre os deixa de lado.


Este ano, no entanto, houve outra grande feliz exceção quando A Forma da Água, do cineasta mexicano Guillermo del Toro, venceu quatro (incluindo Melhor Diretor e Melhor Filme) das treze indicações recebidas. Indicações bastante simbólicas, tanto pelo filme em si (sobre o qual logo falarei), quanto, sobretudo, pela trajetória do próprio Del Toro.


Guillermo é um desses diretores — assim como o americano Tim Burton — que dedicaram toda sua carreira às questões do fantástico em todas as suas variantes e nuances (no caso de Del Toro, toda sua obra se volta a esta temática, sem nenhuma exceção). Carreira, diga-se de passagem, de imenso sucesso de público e muito diversificada, já que além de diretor, Del Toro também se destaca como roteirista e romancista.


Na verdade, todas as obras de Del Toro convergem em um projeto bastante autoral. O mexicano especializou-se numa estética própria, na qual prevalecem monstros cruéis e monstros sensíveis, monstros humanos e humanos monstruosos, construídos com realismo tanto pela interpretação e direção quanto pela qualidade estética, uma vez que quase sempre são feitos por técnicas tradicionais, com muita maquiagem e cuidadoso figurino em detrimento dos massivos efeitos gráficos gerados em computador, tão em voga na cinegrafia contemporânea, o que lhes confere particular realismo.


Apesar de tudo isso, foi esnobado pela Academia por anos, à exceção, é claro, de seu brilhante O Labirinto do Fauno (2006), embora este só tenha recebido três prêmios técnicos (de direção de arte, fotografia e maquiagem) das seis indicações recebidas, destacando-se enquanto obra estrangeira e por isso não concorrendo às categorias principais.


A Forma da Água veio mudar esse paradigma. De enredo relativamente simples, o filme se passa durante a guerra fria e conta a história de Elisa (interpretada por Sally Hawkins), uma faxineira de um órgão científico governamental americano que ficou muda após sofrer lesões no pescoço, ainda criança. Espirituosa, Elisa é uma mulher bem resolvida, capaz de ver a beleza das pequenas coisas e de sentir prazer em cada momento de sua rotina, ao lado de seus melhores amigos, seu vizinho Giles (Richard Jenkins), um artista plástico gay, e Zelda (Octavia Spencer), uma mulher negra também responsável pela limpeza do mesmo laboratório onde Elisa trabalha.


A rotina pacata dos três muda, no entanto, com a chegada da Criatura (Doug Jones), um ser anfíbio amazônico de aparência humanoide, que passa a ser torturado pelos cientistas americanos do laboratório. Movida não apenas por piedade, mas também por uma forte identificação com o homem-peixe, Elisa decide salvá-lo, antes que os militares o matem. Para tanto, conta com a ajuda de Giles e Zelda, bem como do Dr. Robert Hoffsteller, um dos cientistas responsáveis pelos experimentos com a criatura, que acaba por se revelar um espião russo, cujos ideais de ciência e humanidade superam qualquer lealdade patriótica.


A beleza do filme, porém, está principalmente nos cuidadosos detalhes: desde a fotografia pautada em uma paleta de cores frias, mas fortes, ao figurino que tanto retoma o vestuário da época, como cria a pele brilhante azulada da personagem de Doug Jones, passando pelos diálogos, muitas vezes silenciosos, mas não por isso menos significativos, culminando na incrível trilha sonora de Alexandre Desplat (digna do Oscar recebido), com direito até a participação brasileiríssima de Carmen Miranda. Mas para além dessa dimensão artística — bem percebida pelos responsáveis pela Academia — o filme também se destaca por sua dimensão humana e social em uma conjuntura de constantes e necessárias pressões por mais diversidade em Hollywood. Com as indicações e importantes vitórias de A Forma da Água, a Academia parece, finalmente, ter aberto os olhos para o diferente, tanto no que diz respeito à fantasia como forma de expressão, quanto à diversidade humana como valor a ser prezado.


Em um momento no qual os Estados Unidos são governados (assombrados?) pelo intolerante e intolerável presidente Donald Trump, termos um mexicano ganhando os prêmios de Melhor Filme e Melhor Diretor, com uma obra protagonizada por uma muda, que juntamente com uma faxineira negra, um artista gay e um espião russo salvam um deus anfíbio amazônico das garras dos militares norte-americanos, ao som de músicas de diferentes nacionalidades, é bastante significativo. A Forma da Água, portanto, é, não apenas uma vitória da fantasia sobre a mesmice, do sonho sobre o pesadelo, do singelo sobre o pretensioso, do amor sobre o ódio, mas igualmente uma vitória da empatia sobre a intolerância.

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BRUNO ANSELMI MATANGRANO, TRADUTOR E AUTOR DE DIVERSOS CONTOS E ARTIGOS, É MESTRE E DOUTORANDO EM LETRAS PELA USP


Invisíveis. As amigas Elisa (Sally Hawkins) e Zelda (Octavia Spencer) 



Diretor. Guillermo del Toro no set de filmagens 





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