LITERATURA

Philip Roth: o escritor que não teve medo de se deitar no divã

Philip Roth: o escritor que não teve medo de se deitar no divã

Sua escrita era uma “ironia cáustica”, cujos relevos não eximem a qualidade textual ou o significante vertiginoso que sua obra representou

Sua escrita era uma “ironia cáustica”, cujos relevos não eximem a qualidade textual ou o significante vertiginoso que sua obra representou

Publicada há 6 anos

Gil Piva

Sua escrita era uma “ironia cáustica”, cujos relevos não eximem a qualidade textual ou o significante vertiginoso que sua obra representou



Philip Roth daria um ótimo personagem a Irvin D. Yalom, autor de Quando Nietzsche Chorou. Se em vez de colocar no centro de seu romance o filósofo Nietzsche, submetido a um tratamento com Josef Breuer, um dos pais da psicanálise, Yalom resultasse em focar a terapia em Roth, talvez o romance se tornasse mais interessante.


A bem da verdade, nenhum experimento desse tipo daria conta de tentar uma análise psicanalítica com a mesma verve literária com que Roth resultou o extraordinário ato de se deparar consigo mesmo o tempo todo em sua obra, onde a realidade e a ficção sempre se misturaram a fundo.


Philip Roth, que morreu no mês passado, aos 85 anos, deixou uma obra que pode ser dividida, grosso modo, em três partes: a primeira parte corresponderia a um Roth ainda jovem, confrontando corriqueiramente o imbricamento entre desejo, literatura e religião — o judaísmo, no caso —, nos livros O Seio, O Professor de Desejo ou O Escritor Fantasma (também traduzido no Brasil como Diário de uma Ilusão).


Além disso, ainda nessa primeira fase, há um constante jogo de reflexos, onde, por exemplo, em O Avesso da Vida, Roth enfrentará os temas principais de sua vida recriando pontos de vista e redirecionando sua própria história ao fugir dos eventos reais. Quais eventos seriam reais?


Em Operação Shylock: uma Confissão, Roth escreve sobre dois Philip Roth, e volta a brincar com episódios que marcaram sua vida ao encontrar, segundo ele, um sósia, que se passa por ele, tão logo pretendendo desmascarar as intenções desse outro eu “falso”.


A agudeza desse autor parecia não ter limites, tanto é que em Os Fatos, ele (Roth novamente) resolve trocar cartas com seu alter ego Nathan Zuckerman. Trata-se de uma incomum autobiografia: a ironia sutil desse livro está não apenas na forma como um se coloca diante do outro, mas como um discorre sobre o outro; afinal, Zuckerman conhece Roth melhor do ninguém.


E se tudo isso não der a exata ideia de se tratar de um autor deveras psicanalítico, basta citar uma frase de Edna O’Brien, utilizada como uma de suas epígrafes: “O corpo contém a história da vida tanto quanto o cérebro”. É o desejo que nunca se cala — não que ele não seja retomado mais tarde; será, só que de modo menos presente, faltoso, como um corpo que não corresponderá mais ao ímpeto sexual.


Na segunda fase, surge um Roth propenso a analisar os entreatos da história americana. Livros como Pastoral Americana (vencedor do Pulitzer em 1997) e Complô Contra a América (premiado pela Sociedade dos Historiadores Americanos por ser “o mais notável romance histórico de 2003-4”) pertencem a uma escrita de um fôlego maior, contornando, inclusive, confrontos políticos. Essas obras compõem a vida na América pós-guerra, conotando o fim da utopia americana, as questões morais que marcaram os padrões do espírito da época.


Nesse período, ele obteve o feito de ter sido reconhecido como aquele que escreveu o Grande Romance Americano, que poucos escritores americanos alcançaram, como F. Scott Fitzgerald, William Faulkner, John dos Passos, John Updike, Don DeLillo, para citar alguns.


Já na velhice, é possível entender a terceira parte de sua obra. Roth faz da idade avançada o tema principal, basta relembrar os extasiantes e perturbadores Homem Comum, O Fantasma Sai de Cena e Humilhação.


O engraçado no resultado do processo criativo desses livros é que, ao contrário do que costuma acontecer na vida dos escritores — em que, em geral, nos últimos anos de suas vidas, produzir grandes obras torna-se um fenômeno mais raro —, a estratégia narrativa que arrasta o leitor tanto para monólogos sobre o envelhecimento quanto para a contemplação da vida se caracteriza como estratagemas avassaladores, possibilitando que o reconhecimento da crítica a um autor que não teve medo de se expor nem receio de se reinventar.


Mais uma vez, Roth conquistou novos méritos: o de ter refundado seu próprio estilo e redefinido o conceito de romance; o de ter sido considerado inúmeras vezes o maior escritor americano vivo, embora estivesse aposentado desde 2010.

Claudia Roth Pierpont escreveu, em 2014, uma excelente biografia sobre ele, intitulada Roth Libertado, e cujo subtítulo resume de forma incrível o significado de sua profissão: O Escritor e seus Livros.


Pierpont traduz bem essa última fase do escritor, enfatizando que seus heróis “não cometeram crime algum. São punidos porque a punição é a sina humana”. Ela explica que Roth não aceitava bem os “pseudofreudianos de botequim (...) que nos dizem que nós fazemos o futuro com nossa cegueira deliberada e nossos autoenganos”; em seu Nêmesis (e último trabalho), segundo ela, fica demonstrado “que nossa cegueira é real, ainda que sejamos cegos também a isso”.


É comum relacionar ironia com sarcasmo em obras literárias de grande magnitude. Num Philip Roth, cujo talento incomum também explora as ressonâncias dos contrapontos do sujeito contemporâneo e as necessidades clínicas (afinal, seríamos todos delirantemente desnudados pelos fatos incidentais), não seria exagero denominar sua escrita como uma “ironia cáustica”, cujos relevos apontados por essa expressão não eximem a qualidade textual ou o significante vertiginoso que sua obra representou.


Vale ressaltar ainda que talvez nenhuma outra personagem na história da literatura americana tenha feito tanto jus à apropriação do termo alter ego como a personagem Nathan Zuckerman.


Como se sabe, Zuckerman não é presença constante em todos os livros de Roth, embora Roth esteja em demasia em Zuckerman. Alter ego significa “um segundo eu, um substituto perfeito”, mas não “perfeito” no sentido de estar aquém de problemas ou conflitos; ele se define, antes, como “um substituto ideal” para dar conta do amplo paradoxo que representa Roth. Ao se refletir em Zuckerman, Roth ultrapassa os limites da criação e, por meio do espelho, um se perde (ou ora se encontra também) no outro. Roth desaparece em Zuckerman e deixa este explicar as origens dos relatos e fatos do autor (quando possível, ou necessário).


Tal experiência narrador-personagem vislumbra a dinâmica da transferência freudiana, transportando para “um outro” aquilo que escapa ao autor; só que Roth foi além, reverteu para si esse jogo aberto de mistérios ficcionais, quase como que num ângulo paralelo de sua vida, simbolizando seu consciente e inconsciente. Com Zuckerman, Roth preencheu os vácuos de sua indeterminação e transitoriedade — a lamentável condição humana sendo expressa servilmente pela obsessão ofuscada das pulsões.


Não à toa, o livro que revelou Philip Roth chama-se O Complexo de Portnoy (sua opus magnum); ou seja, ele carrega em si um termo psicanalítico até no título.

Alexander Portnoy é um jovem advogado nova-iorquino bem realizado que se entrega a um divã para perpassar num fôlego contínuo toda a frustração de sua vida sexual, a infância dedicada à masturbação, a oscilação entre caráter religioso familiar e o realismo despudorado e patético de seus desejos não realizados.

Engana-se quem enxerga na obra apenas a superexposição de um indivíduo inseguro e despedaçado. Roth, como ninguém, soube explorar o desespero existencialista que germina no corpo: vazio que resvalava na cultura americana das décadas de 1950-60.


O Complexo de Portnoy segue por um desdobramento das aspirações avassaladoras que os costumes e a moralidade interrompem utilizando da culpa e da punição. Dito de outra forma, Portnoy é o claro exemplo da limitação instituída sobre o insólito inconsciente (do desejo).


A psicanalista Tania Rivera, em seu livro Guimarães Rosa e a Psicanálise, relembra que “Freud afirmou que a ficção é o modo pelo qual se constitui o homem. Guimarães Rosa, que ‘a vida também é para ser lida’”.


Não podia ser diferente, tem-se em Roth a literatura do sujeito.


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