Aposto que algum dia na vida você ouviu a expressão “moleque de colônia”. Para os mais jovens que não tem a menor ideia do que isto significa, eu explico. Moleque de Colônia era algo mais ou menos como o “cão chupando manga”, ou como queira o amigo leitor, aqueles meninos arteiros e endiabrados de antigamente. Penso que na minha infância e adolescência fui “moleque de colônia”. Meus irmãos tem certeza. Dizem até hoje que eu era o “Pedro Malazartes” da turma.
A memória mais antiga que tenho remonta lá por volta de 1956, quando eu tinha uns quatro anos de idade. Lembro que gente morava na fazenda do “seo” Egídio Buosi, lá na zona rural de Cedral. Para aquela época, era uma fazenda moderna que contava com energia elétrica produzida por um gerador próprio. As principais atividades da propriedade eram a produção de café e engorda de gado de corte. Lembro muito bem das grandes colheitas de café e também me recordo do povo reunido em mutirão cortando o “Jaraguá”,erguendo no meio da pastagem aquelas montanhas de capim prá fazer silagem para o gado. Lembro também que o “seo” Egídio tinha um caminhão Ford verde onde aos domingos levava o povo pra participar de procissões e assistir missas na Igreja Matriz de Cedral. Na época da gabiroba ele autorizava o “chofer” pegar o caminhão e levar o povo para as campinas em busca daquelas frutinhas deliciosas e tão raras hoje em dia, que nem lembro mais o gosto. Justiça seja feita; ele era um empresário rural de visão e mais que isso, era um humanista. Todo mundo gostava dele.
E eu ainda usando chupeta, gostava da Idalina, uma mocinha bonita e de traços delicados, a filha mais nova do fazendeiro. Era uma criatura simples, mas muito amorosa. Não sei se virou professora, mas tinha vocação e paciência para lecionar. Digo isso, porque lembro que ela tinha uma lousa na varanda da casa e caixas de giz branco e colorido. Desenhava coisas e deixava também a gente fazer os nossos rabiscos. Acho que ela foi a minha primeira professora não oficial, porque a primeira mestra oficial que tive, foi a saudosa Dona Eliete Vidotti, que não faz muito tempo, pegou a malinha e foi embora para o andar de cima. Digo e repito que ela foi um anjo na Terra e na vida daqueles que tiveram a sorte de aprender com ela as primeiras letras do beaba.
Eu era um menino levado, arteiro e dono de arrumar boas e belas confusões. Desde muito pequeno sempre dei trabalho. Mas o “moleque de colônia”, tinha lá o seu lado bom e perdia horas e horas andando pelos estradões de terra batida e bordas das matas em busca das mais belas flores de São João e Capitães do Campo. Fazia ao meu modo um amontoado delas, digamos um improvisado ramalhete caipira, levava de presente pra a Idalina.. Em troca, ganhava um suave e perfumado beijo no rosto. Beijo ganho, noite de sono perdida. Confesso; a Idalina foi o primeiro grande amor da minha vida!
Na grande colônia da fazenda dos Buosi, nossa casa era uma das últimas. Defronte dela havia uma estradinha de terra batida para passagem dos caminhões carregando café, carroças, carros-de-boi e charretes, e do outro lado um imenso barranco e lá em cima, uma frondosa goiabeira.. Ali era o meu palco particular de shows. Lá do alto, ajudado por um amigo que não lembro o nome, a gente descia uma latinha dessas demassa de tomate presa por uma cordinha feita daqueles barbantes de costurar sacas de café ou arroz... Aquela “coisa” era o nosso microfone... .de onde eu anunciava empolgado,.caprichando na entonação de voz e com o peito estufado, dizia em voz alta.....agora com vocês....Nat King Cole....pode? Bom, lá em 1956, aposto que ninguém ali e nem na cidade sabia o quê ou quem era Nat King Cole. Isso dá o que pensar. Mas traduzindo para a nossa linguagem da roça... eu dizia e repetia à plenos pulmões...agora, com vocês....”Netincol”....e o meu amigo cantarolava uma música qualquer. Eram tempos inocentes.
O lado artístico era uma coisa, o lado arteiro era outra. Veja lá se a gente tinha um pingo de juízo? Eu e alguns meninos da colônia tínhamos a mania de andar equilibrando-se sobre as estacas de aroeiras das cercas dos mangueirões de porcos, tendo pela frente como obstáculos além das irregularidades dos altos e baixos entre uma e outra estaca, passar pelascercas de arame farpado que cruzavam o mangueirão. Claro que haviam outras artes, mas eram coisas menos perigosas. Acredite se puder, nesse tempo não tinha mais do que cinco ou seis anos de idade. Meu anjo da guarda teve muito trabalho!
Desde sempre tive meus cachorros de estimação. Naquela época tinha um vira-lata preto e branco, era o “Colete”. Se alguémlevantasse o braço me ameaçando, mesmo que por brincadeira, ele avançava as dentadas sobre o agressor. Um dia choveu muito e o riacho que cortava a fazenda ficou inundado. Fomos todos da família para do alto da ponte ver o espetáculo da grande enchente. Aí um dos meus tios, querendo fazer gracinha, bancando o “molecão de Colônia” no pior sentido da palavra, jogou o “Colete” na água para ver se ele era mesmo bom de nado. O coitado do meu cachorro sumiu para sempre arrastado por aquelas águas revoltas. Diz minha mãe que quando eu encontrava o ordinário, embora ele já fosse moço, sempre chutava as canelas dele. Nessa época eu devia ter uns seis anos, só que disso não me esqueço até hoje. O artista nunca soube, mas eu tive uma terrível bronca dele por muitos e muitos anos. Semana que vem tem mais. Até lá.