CADA ARTE...

A consciência da pedra

A consciência da pedra

Publicada há 5 anos

O. A. Secatto



Vamos, turma. Todos juntos. Isso. Por favor, silêncio!


A professora tentava pôr ordem nos alunos do ensino fundamental, enquanto estes entravam no museu. A excursão havia sido programada fazia tempo. Muita inquietação permeava a expectativa e a curiosidade das crianças.


— Prestem atenção. Nesta ala está a exposição do homem pré-histórico. E esta aqui é a primeira peça. Vejamos...


“Marcas na parede. Esqueleto de homem do paleolítico.” Era o que dizia a etiqueta minúscula no canto esquerdo do vidro.


De fato, a peça se constituía de uma ossada perfeitamente conservada. Era um homem sentado, de costas para o público, com uma mão no ventre e a outra numa parede de pedra recortada no exato tamanho das proporções do fóssil. O braço direito estava estendido, e as pontas dos dedos deixavam claros quatro sulcos no arenito fossilizado.


Os paleontólogos atestaram que era um esqueleto masculino e que tinha várias costelas quebradas, além de uma fratura exposta na perna direita, o que se podia ver a olho nu. Devia estar em um buraco, quando foi soterrado por sedimentos que o preservaram sem esmagá-lo. O fóssil foi habilmente retirado do sítio arqueológico juntamente com a parede de arenito em que estavam cravados os dedos de sua mão.


— E então, turma? O que vocês acham que aconteceu com o nosso colega aqui? Será que ele foi vítima de uma armadilha? Ou foi apenas um acidente?

A razão de estar ali eram conjecturas. Suposições das mais diversas e possíveis à criatividade da mente humana.


Não. Interrompo as especulações em tempo. E desde já perdoe-me o leitor, se aqui me intrometo nos assuntos da nobre professora. Não quero prejudicá-la ou de qualquer forma retirar-lhe o crédito da instrução, mas devo fazer algumas correções, para que todos saibam a verdade que só a pedra pode saber. É claro que a professora não tem culpa do equívoco que comete, eis que apenas está compartilhando com os alunos o que aprendeu pelo custoso estudo. E onde faltam fatos a imaginação trata de logo desenhá-los.


Como é que eu sei disso? Ah, sim! Ia-me esquecendo. Não me apresentei: eu sou a consciência da pedra. E é por isso que não conjecturo o que falarei. Narro apenas os fatos que ficaram esculpidos na minha pele e que não olvidarei até o dia em que sejam eles apagados por martelos, cinzéis e marretas.


Voltemos ao homem. Pobre alma pelo pó embalsamada! Aquele que está diante de nós, em formas retorcidas e na evidente agonia da morte, chamou-se um dia, muito tempo há, Tulák em sua língua. E devo ressaltar que ele não foi parar ali sozinho. Não, não se tratou em absoluto de uma armadilha ou de um acidente. Não. Muito pelo contrário. O solo de contrabaixo que hoje soa desta partitura de pedra fez parte de uma composição maior e muito dramática, na qual ainda se ouviram metais, madeiras e cordas de uma violenta orquestra.


Neste quadro fóssil de milhares de anos viram-se ainda um homem, sua mulher e seus filhos. Ele era Palúk; ela, Agák. E assim começa a história...

Palúk estava à beira de um penhasco, tentando apanhar os ovos de uma águia que acabara de sair para caçar. Ah! Ovos de águia eram uma iguaria naqueles tempos e seriam refeição garantida para aquele dia.


Desse modo, Palúk não se apercebeu da aproximação de Tulák. E este, ao chegar sorrateiro, deu um brusco empurrão em Palúk, que cambaleou, espalhou a poeira desfiladeiro abaixo, mas não caiu. Recompôs-se e, virando, reconheceu Tulák. Num grunhido revoltou-se e, indignado, partiu para cima de Tulák em exigência de satisfações. Tulák perdera o elemento surpresa e não era corajoso o suficiente para uma luta justa. Desistiu do embate e foi embora.


Mas Tulák não partiu para seu lugar. Irritado com o fracasso, tendo frustrado seu próprio intento, sabia que Palúk levaria algum tempo para conseguir comida. Foi então que Tulák dirigiu-se à caverna onde se alojava a família de Palúk: sua esposa e seus três filhos.


Lá chegando, não encontrou resistência, pois os dois meninos eram valentes, mas não tinham força para enfrentar Tulák à altura. As crianças foram lançadas num fosso à beira do interior da caverna, cujas paredes não podiam escalar.


A esposa de Palúk, Agák, pareceu indefesa frente à força covarde de Tulák. Não se entregou, porém, tirando forças do nada, e Tulák não conseguiu dominá-la. Seus gritos e o choro das crianças assustadas de longe chamaram a atenção de Palúk, que abandonou os ovos apanhados e correu. Correu como se seus ancestrais lhe dessem a força e a velocidade de muitos homens.


Tulák era grande, mas covarde. Palúk era menor, contudo hábil e valente. Palúk lançou-se sobre Tulák, movendo-o de cima de sua esposa. Tulák, no reflexo, atirou Palúk contra a parede e o atacou com as mãos nuas. Palúk sacou de sua faca de pedra lascada e fez um corte na barriga de Tulák, que recuou, tapando o corte com as mãos. O homem nada teme na defesa de sua família. Ou, como um dia ouvi do som de um vigia noturno, Nulla in terra più l’uomo paventa, se dei figli difende l’onor! (“Nada mais no mundo teme o homem que defende a honra dos filhos!”) — algo do Rigoletto de Verdi, foi o que o vigia murmurou.


Ora, Tulák se apavorou com o sangue que lhe escorria pelo abdome e num ímpeto irracional investiu novamente contra Palúk. Mas este se esquivou rápido, fazendo Tulák cair por suas próprias pernas no fosso, ao lado das crianças, que pisaram em sua cabeça e, subindo, foram tiradas dali pelo pai. Ao cair, Tulák quebrou uma perna e várias costelas. Ficou preso no escuro por tentar se apoderar injustamente do que não conquistara com amor e seu próprio esforço.


Palúk selou a entrada da gruta com muitas pedras e arbustos. Pareceu nunca ter havido nada ali. Tulák ficou imóvel e cravou as unhas na parede do buraco. Não se arrependeu do que fizera, senão praguejou e, até o último suspiro, rangeu os dentes com sangue no olhar.


Essa foi a verdadeira história das “Marcas na parede”. Dela se lembre quem a quis ouvir. Mas, no final, foi apenas mais um homem. Um homem que sucumbiu ao mal de suas próprias entranhas e não o regurgitou. Mais uma vítima de instintos indomáveis e profanos. Opa... lá vem a professora novamente. Aqui me despeço do bom leitor, na espera de um novo encontro. Adeus!


— Vamos, turma. Ali podemos ver várias pontas de lança feitas de pedra lascada. E mais à frente veremos um exemplar intacto de um mamute encontrado no gelo, venham...


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