CRÔNICA

O Quarto do Faraó

O Quarto do Faraó

Publicada há 5 anos

Rodrigo Martiniano Tardeli 




Quando o grande Alexandre da Macedônia morreu, Ptolomeu, o maior deles, iniciou seu reinado no Egito, fundando a dinastia dos Lágidas. Em 305 a.C. assumiu os títulos faraônicos, dando continuação às dinastias iniciadas mais de 2.900 anos antes.


Ptolomeu I, o Salvador. O Faraó. Sabiamente, não extinguiu os cultos antigos, mas fomentou-os e incrementou o panteão das divindades. Com a difusão do helenismo, das filosofias, fez com que os egípcios tivessem novas reflexões sobre seus deuses. Mais do que promover o sincretismo com o Olimpo, Ptolomeu e seus sucessores introduziram bibliotecas, templos, santuários, escolas de ciências e religião pelo Alto e pelo Baixo Egito. A força do poderoso Sobek ganhou dimensões filosóficas! O poder do senhor Rá, que nasce e morre diariamente, ganhou novas formas e nomes. A atividade do senhor Osíris e do senhor Anúbis foram nova e exaustivamente explicadas e compreendidas. As senhoras Néftis, Sekhmet, Ísis, Nekhbet e Bastet são supremamente reverenciadas. Incenso ao senhor Ptah! Ptah... Ptah!


Eu estava no quarto do Faraó. Eu era o Faraó? As paredes eram de um estranho vermelho texturado. Nos frisos ocres, as tradicionais figuras dos egípcios em suas atividades cotidianas se acumulavam. A cama, com dossel, não era confortável. Havia escadas, lavatórios e um painel sobre a cama representando o banho de uma rainha. Lembro-me de que ela estava com uma túnica azul. E eu, com que roupa estava? Não era um Balenciaga, definitivamente.


E havia um cheiro. Bem verdade é que havia alguns cheiros no quarto do Faraó. E sempre fui ligado a cheiros. Sempre. Mas nem todos os aromas daquele quarto eram agradáveis. Havia uma atmosfera opressiva e artificial.


Na cama, deitado, pude perceber uma presença naquele quarto. A presença se tornou mais intensa por causa de seu cheiro. Cheiro de noite. Desses que desejamos que nunca acabem. Oh, éteres inefáveis!


O que era aquilo? Uma divindade? Talvez fosse a teofania da senhora Ma’at, a mais desejada. A Justiça, a Retidão, a Verdade, a Ordem. Ela veio me trazer a ordem: leve como uma pluma, sábia como uma velha, dura como o ankh. Derramei-lhe incenso e canções. Implorei-lhe atenção e bênção. Ganhei um sem-número de palavras duras, porém gigantescamente verdadeiras. Ma’at não mente jamais. Ela não é Set. Jamais seria semelhante a ele. O cheiro, o beijo, o toque, as palavras. Tem momentos, por duros e realistas, que deveriam durar para sempre, assim como o cheiro da aparição. Cheiro de noite.


Por que aquelas palavras? Por que a retidão e a ordem têm de ser cruéis? Por que o sonho, como o cheiro, não pode ser eterno?


A aparição veio sobre mim. Com uma força descontrolada me beijou e me seduziu. Tosses denunciavam que ela era mais real do que um sonho. Mais tangível que um cheiro. Mais desconcertante que um tapa.


Quando pousei minhas mãos sobre sua cabeça linda, de uma perfeição impossível de descrever, resolvi, como sacerdote que sou, ou era, invocar uma divindade. Observando bem aquela visão, iria invocar o senhor Sobek, toda a força nilótica. Mas meus lábios não pronunciaram as palavras.  Mas a força era realmente óbvia e indiscutível. Uma louvação a Ptah, então. A invocação do supremo artífice não se formou. O que acontecia? Não tinha a menor das dúvidas que se tratava de uma divindade poderosa.


Ao inalar novamente o cheiro arrebatador, sentir a alva pele colorida entre meus dedos, com verdes, azuis e vermelhos mágicos, tudo era mágico! Uma sílaba começou a se formar nos meus lábios repletos daquela pele. A invocação chegou! E o êxtase foi suplantado pelo medo, pelo horror.


“Oh, meu Nefer-nefru, o mais belo de todos os belos, / Eu o nomeio Apep, que é Apófis, o temido senhor do Caos! / Tu que és o Terror das Doze Casas do Du’at! / Tu que és a Grande Serpente das Trevas, o Odiado! / Eu o invoco! Eu o nomeio!”

Eu estava em intimidade com lorde Apófis! A ordem não era ordem, era o caos. Mas o caos não é necessariamente mal. Apófis veio me mostrar que a minha ordem não era correta. Veio purgar minha existência de uma ilusão de valores plastificados e inócuos. Veio botar tudo abaixo, tudo, tudo mesmo. Veio despertar sensações extintas. Veio, antes de tudo, ensinar o professor orgulhoso. Veio aplainar os caminhos para que se construa algo de verdadeiro.


Quebre tudo, senhor Apófis! E repete tua visita nos meus domínios, no meu quarto. Ensina-me a sentir, a viver, a te amar.


Que quarto estranho!


Rodrigo Martiniano Tardeli, formado em Direito pela Unesp, é professor universitário nas áreas de Direito Civil e História do Direito pela Uninove

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