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JOÃO CARLOS PEREIRA GOMES: O HOMEM QUE TRAÇOU A GENEALOGIA DO MAL

JOÃO CARLOS PEREIRA GOMES: O HOMEM QUE TRAÇOU A GENEALOGIA DO MAL

Exemplo irretocável do jornalismo combativo entre 1969 e 1971, João Carlos Pereira Gomes, tempos depois, tornou-se um escritor polivalente, professor e crítico contumaz da política brasileira

Exemplo irretocável do jornalismo combativo entre 1969 e 1971, João Carlos Pereira Gomes, tempos depois, tornou-se um escritor polivalente, professor e crítico contumaz da política brasileira

Publicada há 6 anos


JOÃO CARLOS PEREIRA GOMES:

O HOMEM QUE TRAÇOU A GENEALOGIA

DO MAL NA HISTÓRIA DA POLÍTICA BAIANA





O jornalista e escritor baiano João Carlos Teixeira Gomes (o Joca) foi responsável por um dos momentos mais marcantes da história brasileira, entre 1969 e 1971, quando esteve a cargo do Jornal da Bahia— um dos mais respeitados da época. Em meio à ditadura, sua trajetória profissional incluía perseguições, retaliações e uma infinidade de atitudes espúrias que o falecido Antonio Carlos Magalhães (ACM), senhor de uma política coronelista, fazia de seus desmandos um fenômeno à maneira militar.


Defensor da liberdade de expressão, João Carlos, a rigor, não se intimidou e enfrentou qualquer tipo de repressão consagrando sua verve intelectual; assim, se ACM possuía o apelido de “Toninho Malvadeza”, em contrapartida João Carlos merecidamente recebeu a alcunha de “Pena de Aço”.


Em 2001, João Carlos Teixeira Gomes lançou o corajoso Memórias das Trevas —Uma devassa na vida de Antonio Carlos Magalhães(Geração Editorial), onde narra toda a trajetória tumultuada daqueles anos e aproveita para esclarecer como períodos turbulentos não se encerram de modo simples. Ainda hoje o livro é considerado um referencial para se entender vários aspectos históricos da política não só baiana como nacional.


João Carlos também foi responsável por outro livro de extrema importância cultural: Glauber Rocha: Esse Vulcão.Uma biografia sobre o cineasta Glauber Rocha, de quem o autor fora amigo íntimo, mas que, publicado em 1997 pela Nova Fronteira, infelizmente se mantém esgotado e sem novo interesse editorial.


Em entrevista muito agradável concedida ao Cultura!,o escritor e colunista do jornal baiano A Tarde, um dos mais antigos do Brasil, com 82 anos, surpreendeu com seu modo atencioso e solícito. Irreverente e crítico, sua pessoa comunga essas duas qualidades — acometidas, ora ou outra, de deliciosas nuances na fala, beirando um tom declamatório e elevando seu poder de narração—, de modo que não se percebe o tempo passar.


Como se verá, João Carlos não deixou nenhuma pergunta sem resposta, e, como ele mesmo ressaltou:“Prontifiquei-me de respondê-las integralmente”.



Você que viveu de perto os tempos inglórios da ditadura, como se sente ao ver uma grande parcela da população clamar por uma intervenção militar?

É consequência do desespero social diante do clima de corrupção generalizada que devasta o Brasil.


Em vista disso, a cidadania do país estaria tão frágil, como alegou há poucos dias o sociólogo Reginaldo Prandi, em entrevista para a “Folha de S. Paulo”?

A cidadania não está frágil, frágil, sim, é a crença da sociedade nas instituições sociais, jurídicas e políticas. A cidadania esteve presente nos protestos de 2013, por exemplo. Dilma começou a afundar diante daquela massa incoercível de indignados, que persiste, mostrando a cidadania ativa e vigilante.


E a própria imprensa, ainda hoje, continua também sendo alvo de críticas, como é o caso de uma descrença no papel da Rede Globo, que vem desde seus tempos no “Jornal da Bahia”. A Globo ainda merece essa desconfiança, ou se trata de um exagero fazer esse tipo de relação, uma vez que as informações são de extremo imediatismo?

A Globo sempre foi comprometida com seus interesses, mas, no caso das denúncias contra Lula e o PT, apenas uma voz ao imenso clamor nacional contra o mensalão, o saque na Petrobrás, a corrupção dos líderes petistas abandonados inclusive pelas lideranças históricas do partido, como Heloisa Helena, Walter Pinheiro, na Bahia, Sampaio, Chico Alencar, ou correligionários como Frei Beto, etc., etc.


Em seu consagrado livro “Memórias das Trevas – Uma devassa na vida de Antonio Carlos Magalhães”, você bem comentou essa ardilosa relação entre política e imprensa, como, por exemplo, as concessões de rádio e TV...

A imprensa brasileira, sobretudo a do eixo Rio–São Paulo, tem uma tradição de subserviência ao poder. Jornalistas conhecidos do Globo, Folha, Veja, o próprio Mino Carta, tinham medo do violento ACM. Jô Soares e Marília Gabriela o entrevistaram com servilismo. Na imprensa escrita o Malvadeza fazia o que queria. Uma vergonha!


No livro, encontramos um relato histórico a partir de sua experiência como jornalista no “Jornal da Bahia”. Durante a narrativa, não passa despercebido ao leitor como o embate político entre ACM e o jornal logo se transformou numa perseguição pessoal por conta dele, e numa semeada defesa por sua parte. Tais episódios ainda giram em torno de sua vida?

Claro! Resistir à violência carlista foi um ato de bravura raro em todo o Brasil, sempre intimidado pela capacidade de perseguir do tirano da Bahia. Mino Carta chegou a escrever editoriais para o jornal baiano de ACM, ajudado, também, pelo Marinho da Globo.


Sempre resgato a lembrança da tentativa de suspensão de sua entrevista (que seria ao vivo, em 2001, para o lançamento do livro) na TVE do Rio de Janeiromovida, poucas horas antes, pelo “Observatório da Imprensa”. Como se deu o ocorrido? Afinal, de certo modo, obstáculos semelhantes deram-se também no meio da editoração, segundo interesses políticos e privados, não foi?

Dines [Alberto Dines, jornalista que ficou famoso por apresentar o programa “Observatório da Imprensa”], no início, recuou, mas logo depois manteve a entrevista que foi um absoluto sucesso. Dei naquela noite um show de coragem, equilíbrio e competência. Fui bravo em todo esse episódio inédito, comprometendo a subserviência e o mercantilismo da imprensa nacional.


Na época do lançamento, “Memórias das Trevas” vendeu 25.000 exemplares em apenas seis dias e uma lista de espera para leitores também impressionava.Se fosse revisar o livro hoje para um relançamento, mudaria algo? Teria o que acrescentar, você sente que um ou outro item merecia atenção melhor?

Claro que teria que aperfeiçoar alguns trechos e usar de maior contundência no livro. Temendo que jamais poderia publicá-lo não fui duro em certos episódios como deveria ter sido. ACM era um filho da puta que não podia ser tratado com nenhuma condescendência. Apesar de tudo, a coragem do livro assombrou o Brasil de jornalistas covardes ou omissos. Somente o Estadão nos ajudou com boa cobertura.


Antes de mudarmos de assunto, gostaria de “esclarecer” uma dúvida particular sobre o livro. Como disse, sua narrativa ganha a cada página um tom mais pessoal, e você chega a elaborar um capítulo considerável relatando as viagens que fez quando deixou o “Jornal da Bahia”. Fiquei surpreso com esse capítulo, afinal eu tinha em mãos uma obra cujo objetivo principal era o de desvendar os bastidores políticos. Por que a mudança de “ares”?

Para provar ao público que eu não era um jornalista raivoso ou vingativo, que tinha uma bagagem cultural que me punha acima do apenas “Pena de Aço”, ou seja, o jornalista de combate em que acabei me transformando. Daí ter discorrido sobre minha vida cultural, fato que não agradou a certos leitores por encompridar o livro e diversificar o episódio da luta heroica do Jornal da Bahia, inigualável no Brasil da época. Advirto: em nenhum outro estado brasileiro um jornal registrou façanha igual. ACM era o soba mais poderoso entre os civis aduladores dos militares. Façanha soberba que eu comandei no Jornal da Bahia naquela época brutal. Tenho que me orgulhar disto pelo resto da vida! Imagine as dificuldades que enfrentei pessoal e emocionalmente com essa luta gigantesca! Em plena ditadura militar, combater um tirano violento, corrupto e perseguidor!


O filósofo e ex-secretário da Educação do governo Dilma, Renato Janine Ribeiro, disse recentemente que um dos problemas do PT nesses anos se deu ao fato de o governo ficar se vangloriando por suas conquistas e se esquecer de traçar novas metas e planos progressistas. Qual sua opinião a respeito? Como você avalia esses anos dos governos Lula e Dilma?

Nada de filosofias! O problema do PT é simples de ser analisado: simplesmente, as lideranças do PT não tinham capacidade política e cultural (que esperar de um partido orientado por Duda Mendonça e João Santana, dois oportunistas e mistificadores?) e se corromperam com as facilidades criadas pelo poder. Apenas isto: corrupção em alta escala, ânsia infinita de permanência no poder.


Em seu último livro, “O Chamado da Tribo”, Mario Vargas Llosa afirma que “a doutrina liberal tem representado desde suas origens as formas mais avançadas de cultura democrática e o que mais nos defendeu do inextinguível”. Não está, de certo modo, implícita uma estranheza latina nesse pensamento? Uma vez que a América Latina tem se posicionado contra o monopólio capitalista?

A doutrina liberal é a doutrina do oportunismo capitalista, a ausência de responsabilidade social, o proveito dos engordadores do dinheiro, o massacre das camadas deserdadas e cativas. Leva a formas alternativas de dependência e de escravidão.


Para as próximas eleições nada mudou: não há renovações partidárias e as representações parecem engessadas, refém de um “confederalismo” maniqueísta que isola por completo um plano de governo real.O que o eleitor deve esperar daqui para frente? Que mudança seria possível sinalizar?Insisto, você teme a ditadura?

Nós já vivemos há longos anos na ditadura dos corruptos e dos incompetentes. Precisamos rejeitar a sacralização de certas palavras. O quadro político que aí está representa o prolongamento da ditadura das incompetências. E há certos setores do STF que buscam avidamente proteger os corruptos e corruptores da nação da Operação Lava Jato. A Segunda Turma do Supremo é uma ameaça à limpeza ética do Brasil.


Outro livro seu imprescindível é “Glauber Rocha: Esse Vulcão”, cujo teor se dispôs a explorar o (falso?) mito de artista boêmio e inconsequente. Como era a convivência com ele?

O “Vulcão” Glauber era um companheiro solidário e terno. Convivi com um gênio, um homem lúcido e capaz, com uma notável antevisão dos fatos sociais, culturais e políticos. Esgotou-se para fúria do seu talento criativo. Glauber percebeu bem cedo que a democratização só poderia vir com o apoio dos setores do militarismo. Foi punido pelos fanáticos que ajudaram a derrubar Jango pelas pressões.


É lamentável que esse livro tenha caído nas malhas do esquecimento editorial. Creio que esse descaso envolve, novamente, resquícios dos áureos anos tempestuosos —pois sua imagem de jornalista afrontoso resiste —; e por isso, talvez, representa muito mais do que um declarado desinteresse mercadológico?

Esse livro foi colocado em segundo plano pela camarilha cultural de Rio e São Paulo e jamais reeditado. É um absurdo tão grave que me entala a garganta e nem dá vontade de analisar. Símbolo da miséria cultural e editorial de um país capenga.


Como você encara o cinema brasileiro de hoje? Falta um tom poético “àla”Glauber?

Sem rumo ou criatividade. Sem direção. Apático!


Como literato, produziu ensaios, poemas e se tornou membro da Academia de Letras da Bahia— que, por ironia, também tinha como membro ACM (risos).Depois, abandonou o jornalismo, como você mesmo deixou claro no “Memórias das Trevas”, resolvendo se especializar e lecionar literatura.Dedicar-se à literatura significou para você um momento tão entusiástico quanto o de ser jornalista?

Jamais. Descobri que os professores de literatura são os maiores inimigos da literatura. Nos departamentos impera a mediocridade.


Como recorda sua obra? Os incríveis episódios que se transformaram em matéria-prima para, em seguida, constituí-la no centro vital de seu trabalho?

Eu considero uma obra digna, vasta e relevante. Mas viver na Bahia é viver no exílio. O Brasil é um foco de mistificadores literários. Os bandos de Rio e São Paulo controlam tudo, desde as viagens literárias, as edições e os prêmios. Nosso país é um arquipélago cultural de ilhas desentrosadas.


Para encerrar, poderia dizer em qualprojeto está trabalhando atualmente?

Acabei um livro sobre a Geração Mapa[seleto grupo de artistas e intelectuais estimulados por um pensamento crítico-criativo que propunha “mapear”, em tom de vanguarda, estilos e gêneros culturais da Bahia que iam da música aos desenhos, da literatura ao cinema, etc. Entre seus expoentes, encontravam-se Dorival Caymmi, Jorge Amado, Glauber Rocha e próprio João Carlos Teixeira Gomes], a ser lançado ainda este ano, e estou terminando o Escritos Incendiários do Pena de Aço. Aos 82 anos, continuo sendo chamado de “espada de fogo”, “pena de aço”, “tigre da Sibéria”, “leão da Pituba”, “urso dos Urais”, “tubarão do Leblon”. Em meu livroA BravaTravessia(Caramurê, 2016), com mais de oitenta fotos, narro minhas viagens pelo mundo, até a China, Mongólia e a Sibéria, pela transiberiana. Brava e longa vida! Daí ter obtido tantos apelidos curiosos, destacando minhas escaladas mundiais e minhas lutas. O escritor Ramiro de Matos afirmou que minha vida “é um exemplo de insurgência”.

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