Em tempos de rosa e azul, goiabeiras, mestrados bíblicos, Paulo Freire comunista, “cidadões”, laranjas e afins, vale ressaltar o uso equivocado do conceito de “ideologia”.
Destutt-Tracy, aristocrata e iluminista francês do século XVIII, cunhou o termo, no sentido de apresentá-lo como uma espécie de “mãe de todas as ciências”. Ideologia seria um saber que traria consigo o cerne de todas as ideias.
Todavia, essa conceituação apresenta-se por demais vazia. Se nos ativermos à definição semântica: “logia” de logos — do grego —, “razão”, “palavra”, “estudo” e “lógica”. Portanto, “estudo das ideias”. Quais? Todas ou nenhuma.
Recordo-me de uma charge publicada pelo genial Glauco: no primeiro quadro, um casal abastado, em sua mansão, com uma enorme televisão ligada, na qual um político dizia: “Povo Brasileiro!”. No segundo, uma família de trabalhadores, amontoada num sofá, uma sala bem simples, sem lustre, a geladeira no mesmo ambiente, um pinguim dando o tom kitsch, uma televisão bem menor, na qual o político bradava: “Povo Brasileiro!”. Por fim, no último, uma multidão aglomerada em frente a uma loja — esses não tinham casa, que dirá televisão —, diante de um pequeno aparelho, no qual o mesmo político vociferava: “Povo Brasileiro!”.
A tragicomédia reside em: com quem fala o político? Com qual classe social? Suas ações e intencionalidades são as mesmas para todas as classes? Somos todos iguais? Há igualdade social, econômica e política? Medidas econômicas têm o mesmo impacto para todos os extratos sociais? Governa-se indistintamente para todos os brasileiros? Somos todos iguais perante a lei?
Quem é o povo brasileiro?
É possível entendermos o conceito de povo como o conjunto de pessoas que falam a mesma língua, possuem hábitos, costumes, saberes e fazeres iguais e são unidos pela mesma língua?
É possível pensarmos povo como as camadas mais baixas da sociedade?
É aceitável entendermos que, quando se diz “nós, o povo”, se pretenda estabelecer uma igualdade, uma harmonia que inexiste?
É aceitável que entendamos que muitos sem escrúpulos queiram utilizar um discurso com essa intenção, a fim de escamotear a realidade?
Todas essas inferências são possíveis.
A professora doutora em Filosofia Marilena Chauí publicou um opúsculo, há mais de trinta anos, chamado O que é Ideologia?, pela Editora Brasiliense, que se transformou num grande êxito. Resumidamente, a filósofa nos mostra que o propósito da ideologia é, a partir de um discurso vazio e lacunar, apresentar supostas verdades, sem que se tenha condições de refleti-las, aferir sua veracidade criticamente, que apenas as aceitemos. Por exemplo: numa propaganda governamental, mostra-se uma suposta escola pública, linda — pintada, bem mobiliada, limpa —, com crianças felizes e sorridentes; uma bela refeição; professores felizes e pacientes. Tudo impecável. Uma voz ao fundo diz: “A educação é um direito de todos.”
Isso entra na psique das pessoas, de forma inconsciente, que passam a reproduzir essa “assertiva” como verdadeira e real.
Cabe perguntarmos: isso ocorre? A escola pública é assim? A escolas de ricos e pobres são iguais? A formação voltada para os ricos é a mesma destinada aos pobres?
Há ainda outra forma de se pensar o conceito de ideologia. Quando se pergunta: qual a ideologia desse livro? Está a se perguntar qual seu conteúdo, as ideias vinculadas à obra. Talvez: há algum conteúdo político partidário no livro?
Outra forma: qual a ideologia desse autor? O que pensa, o que defende esse autor? Como concebe o mundo? São questões pertinentes ao fazer-se uso do conceito de ideologia.
Ao compor e cantar a canção Ideologia, Cazuza dizia: “Ideologia, quero uma pra viver”. Seu intento era afirmar: quero convicções políticas, éticas e estéticas, com as quais pautarei minhas ações.
Dito isso, perguntamos: é possível que vivamos sem ideologia?
Existe algo ou alguém que possa existir e conviver com seus semelhantes, sem nenhuma opinião?
É concebível pensarmos numa opinião “neutra”?
Como expor determinada situação ou ocorrência sem um ponto vista ou ideologia?
Será que a história do “descobrimento” do Brasil, contada por um português, é a mesma versão do chamado índio?
A Segunda Guerra Mundial é mostrada pela mesma ótica por um norte-americano e um nazista?
Sempre há uma “contaminação” do olhar, de acordo com a ideologia.
Dizer não tê-la é a mesma coisa que afirmar que se pode viver sem oxigênio.
Pior: quando se exige que se trate de algum tema, faça alguma exposição, sem ideologia, é igual a se cobrar que se fale sem emitir opinião, sem apresentar uma ideia. Uma ação mecânica e anti-humana.
Não é possível tratar qualquer coisa sem criticidade. Aliás, se o fizer, já será ideológico, na medida em que estará expressando e a defender a omissão.
Somente um ser desprovido de qualquer ideia, preparo intelectual, capacidade mínima de uso de neurônios, pode ordenar que se fale sem ideologia.
A não ser que seja um palhaço.
qualquer ideia, preparo intelectual,
capacidade mínima de uso
de neurônios, pode ordenar que
se fale sem ideologia".