AILTON FERNANDES
Por ocasião da lembrança do último novembro, que marcou cem anos do fim da Primeira Guerra Mundial, e também por ser esse um assunto que desperta grande interesse nas minhas aulas do terceiro ano do Ensino Médio, penso que vale a pena lançar os olhos a esse conflito.
É um momento em que também eu, de maneira descarada, faço doutrinação junto aos meus alunos, no caso condenando a guerra por ser ela a expressão da mais pura barbárie humana.
A linha seguida é o romance de Erich Maria Remarque, Nada de novo no front. Esse autor foi ele mesmo um sobrevivente desse conflito e posteriormente perseguido na Alemanha nazista pelo seu posicionamento contra a guerra.
Epítetos não faltam para designar a Primeira Guerra Mundial: “a guerra total”, “a guerra que porá fim a todas as guerras”, “a grande guerra”; enfim, designações para este conflito não faltam aos livros de História.
De minha parte, prefiro usar a designação de Eric Hobsbawm: a Primeira Guerra Mundial iniciou o século da barbárie para a humanidade. Nunca, em tão pouco tempo, matou-se tanto como no século XX. A indústria da guerra atingiu o seu apogeu com a invenção e a proliferação de uma enorme máquina de guerra.
Esta máquina de guerra teve no conflito, que no ano passado ano fez cem anos de seu frágil armistício, um excelente laboratório de testes. Lá foram usadas em grande escala as armas químicas, ciência que engatinhava, mas que já era usada para fins de genocídio; tanques de guerra, metralhadoras, aviões, um enorme contingente de soldados oriundos do gigantesco exército de reserva produzido pela Revolução Industrial. Todo este cenário desenhou um conflito que matou mais de 10 milhões de pessoas e feriu, física ou psicologicamente, outros tantos.
Recorremos a Todorov, que lamentou tratar vítimas humanas com cálculos aproximados, quando estudou a conquista da América pelos europeus; mas, infelizmente, dada a grandeza da estupidez humana nesse período, não me resta alternativa senão a de apresentar números aproximados.
Os motivos da guerra foram muitos, desde a luta pelo controle dos Bálcãs pelo Império Austro-Húngaro em disputa com o Império Russo, até o nacionalismo exacerbado que desde sempre esteve presente nas nações europeias. No entanto, a causa principal desta guerra foi o controle, pelas grandes potências europeias — França, Inglaterra, Bélgica, Itália e Alemanha — das terras da África e da Ásia.
Temos uma conjuntura demoníaca, não apenas os europeus sofreram com este conflito, mas principalmente africanos e asiáticos sofreram, sofrem e ainda sofrerão por muito tempo a política de terra arrasada que há mais de 500 anos existe por parte das potências estrangeiras.
A guerra era inevitável e a morte do herdeiro do Império Austro-Húngaro, por nacionalistas sérvios, foi a desculpa criada para começar a guerra.
Ésquilo, dramaturgo grego, disse que a primeira vítima de qualquer guerra é a verdade; este é um caso clássico que comprova esta tese.
As últimas décadas que precederam esse conflito foram marcadas por uma intensa corrida armamentista voltada para a preservação e expansão dos seus respectivos impérios. Neste cenário, a vida humana é o que menos importa, a cultura militarista transformava todos em potenciais heróis para a pátria. Essa mentira alimentou os exércitos com contingentes de jovens nunca antes visto na história.
Os motivos que explicam essa guerra ainda existem. Ainda hoje, as potências mundiais batalham para manter suas posições e avançar; o ovo da serpente resiste...
Foi também uma guerra que não acabou.
O Tratado de Versalhes, assinado ao fim dela, não apenas foi incompetente para gerar a paz, como foi responsável direto pela Segunda Guerra Mundial. Ao humilhar o derrotado, no caso a Alemanha, os países vencedores criaram um ambiente de vingança que foi muito bem explorado pelo nazismo e por Hitler. A Alemanha foi obrigada a pagar todos os prejuízos da guerra e até hoje leva a pecha de ter sido a única culpada pelo início dela. Ora, quando uma guerra começa, todos são culpados; ao jogar a responsabilidade nos ombros de apenas uma nação, criam-se as condições necessárias para que esta busque a vingança.
A República de Weimar, acossada por uma profunda crise econômica, acossada pelo desejo de vingança, pela intransigência dos países vencedores, em especial França e Inglaterra, foi presa fácil de discursos autoritários e de fácil digestão para uma população miserável. Nesse ambiente, Hitler e os seus asseclas encontram campo fértil para que as suas ideias de ódio frutifiquem.
Foi isso o que aconteceu: a Segunda Guerra Mundial é continuação da primeira, pelos mesmos motivos e com consequências inimagináveis. Levou a humanidade ao mais baixo nível e criou situações de barbárie explícita, daí o termo usado por Hobsbawm.
A outra consequência importante foi a ascensão dos Estados Unidos enquanto potência mundial, substituindo as antigas potências europeias e tornando-se o “xerife” do mundo, estendendo seus tentáculos para todo o globo graças à sua força econômica e militar.
Ao estudar um processo histórico, é dever de todos nós observar se as condições que nos cercam hoje não são similares àquelas, se não estamos chocando novamente o ovo da serpente que a todos mata com a sua peçonha.
Ao ver o discurso fácil da atual política brasileira, com seus argumentos odiosos e simplórios, é fácil constatar que o ninho da serpente nos espreita e nos ameaça.
O antídoto para tal perigo é a memória coletiva.
Numa viagem feita há alguns anos, tive a oportunidade de conhecer a cidade de Londres. Chamou-me a atenção ao ver, nas margens do rio Tâmisa, um memorial em homenagem aos mortos dessa guerra não apenas com o frio mármore que lhe servia como uma espécie de lápide, mas sim com flores frescas demonstrando que a memória coletiva dos londrinos não perdeu de vista essa tragédia humana.
A memória é o nosso recurso para afastar a barbárie.
Citações:
“Nada de novo no front”, livro de Erich Maria Remarque (1929)
“A era dos extremos”, livro de Eric Hobsbawm (1994)
“A conquista da América”, livro de Tzvetan Todorov (1982)
“O Ovo da Serpente”, filme de Ingmar Bergman (1977)
*AILTON FERNANDES, GRADUADO EM HISTÓRIA PELA PUC, É DIRETOR DO SINDICATO DOS PROFESSORES DE SÃO PAULO (SINPRO-SP) E PROFESSOR NAS REDES ESTADUAL E PRIVADA DE ENSINO