A palavra é o principal ingrediente da comunicação, servida com o recheio das ideias, no prato da intencionalidade. A palavra dita ou escrita é lançada no mundo para manifestar um pensamento, segundo uma determinada vontade de seu autor, seja consciente ou inconscientemente.
Há três coisas na vida que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida, diz o ditado chinês. No entanto a palavra, quando erra o alvo pretendido, invariavelmente acerta outro. A oportunidade passa, mas a palavra continua existindo no mundo até que o tempo a mate ou a transforme, como ocorre com algumas delas.
No artigo anterior, publicado na semana passada, falei sobre alguns aspectos do eufemismo (que é a substituição de uma palavra ou expressão considerada desagradável, pesada, violenta ou chocante, por outra mais suave, com a finalidade de amenizar seu significado) e como esse recurso é utilizado em áreas como o humor e a política.
Recurso que se mistura e se entrelaça com outra figura de linguagem chamada metonímia, que é “a substituição de uma palavra por outra sendo que, entre ambas, há uma proximidade de sentidos, uma relação de implicação”, ao menos na cabeça das pessoas que andam trocando expressões como mentir por faltar com a verdade e querendo criar ressignificação de palavras substituindo, por exemplo, favela por comunidade.
Observamos, atualmente, a troca de certas palavras e expressões por outras que possam dar um sentido diferente, ainda que seja no plano das ideias, do imaginário, tentando suavizar a carga de significados que elas tenham adquirido ao longo de sua existência nos impressos, nas bocas e nas mentes da sociedade.
Fazem isso para mudar os conceitos, sem, entretanto, mudar os preconceitos, ou, de fato, transformar as estruturas concretas ou subjacentes que consolidaram significado e significante, que relacionam “a coisa” ao que ela representa, como se chamar favela de comunidade fosse transformar a condição física ou social do lugar onde não houve qualquer mudança, porque a acepção da palavra comunidade transmite a ideia de um lugar idealizado, ondes todos vivem felizes e em harmonia, remetendo à cena de uma propaganda de televisão filmada em um condomínio fechado cheio de crianças brincando com seus pais bem vestidos, cercados pela limpeza e por áreas de lazer. Longe dos exageros, essa é a ideia que querem transmitir, sem qualquer intervenção na estrutura física ou social da favela.
Também substituíram preto por negro e depois por afrodescendente. A palavra preto, para definir uma pessoa, tornou-se extremamente pesada com o passar do tempo por seu uso preconceituoso, pejorativo, constantemente associado a ideias negativas. Então mudaram-na para negro e, depois, para afrodescendente. Sem entrar no mérito histórico, etimológico ou político, a verdade é que, novamente, a preocupação foi a de ressignificar um conceito, no entanto, sem a mudança de visão do preconceito racial, já que esse não está calcificado na palavra ou na ideia que ela possa transmitir, mas na mente e, poeticamente falando, no coração das pessoas.
A respeito do fato, o ator e humorista Marcelo Marrom, cujo nome artístico já mostra sua autoridade sobre o assunto racismo, sempre faz piada dizendo que agora na rua não é mais chamado preto ou negro, só dizem que quando afrodescendente quando não faz na entrada, faz na saída, que já até mudaram letra de música, cantando “fuscão afro”, quando ele chegou no local da apresentação. Anedotas à parte, a maneira bem-humorada que o artista usa para fazer sua crítica, reforça a tese de que o preconceito e o racismo não serão combatidos apenas com substituição de palavras.
Poderia mencionar um incontável número de palavras que são utilizadas hoje em dia na busca, essa, sim, preconceituosa e recheada de vis intencionalidades, de tentar mudar ideias e conceitos impregnados na cultura social. Vocábulos que utilizados e reutilizados, negativa ou positivamente, expressam ou fazem querer expressar nossos pensamentos e emoções.
Palavras que mudaram seu significado por inúmeros mecanismos, não somente por intencionalidade maldosa ou pela manifestação da hipocrisia moderna, como o vocábulo “pensar”, que originalmente significava “cuidar”, e “sofisticado”, que vem do verbo “sofisticar” sendo, por sua vez, sinônimo de “sofismar”, denotando “iludir” ou “dar a aparência de verdade”. Assim, originalmente, uma coisa “sofisticada” era uma coisa falsa, diferentemente da acepção utilizada nos dias atuais de coisa moderna, avançada ou requintada.
Eufemismo ou metonímia, seja qual for o recurso utilizado, tudo depende da intenção do autor. Nos exemplos descritos, “eu vejo isso por cima de um muro de hipocrisia que insiste em nos rodear”, como disse o cantor Lulu Santos em sua música “Tempos Modernos”. Um muro bastante sofisticado. Pense nisso.