Despersonalizar significa “mudar a personalidade, o caráter de [...] proceder em desacordo com o próprio caráter” (FERREIRA, 2010, p. 245).Quando um paciente é hospitalizado, habitualmente sofre um processo de despersonalização, isto é, deixa de ter um nome e passa a ser um número de leito, e sua identidade, entendida como um “conjunto de valores e crenças e a personalidade de um determinado indivíduo” se vê comprometida (IMANISHI; SILVA, 2016, p 43).Trata-se de um fenômeno muito frequente que consiste em uma experiência dolorosa de perda de identidade e aniquilação do ser no anonimato, vivência da angústia e alienação diante do adoecimento, decorrentes do isolamento e da própria internação, em que o paciente se distancia de toda rotina (trabalho, estudo, relações sociais e familiares) e do ambiente que o identifica (lar, trabalho), circundado por pessoas desconhecidas.
Na despersonalização, o paciente se destitui de si, de sua subjetividade, granjeia sentimentos e emoções (desconfiança, agressividade, rejeição e desprezo) que permeiam a relação paciente-profissional. Evidenciam-se a quebra da rotina e produtividade na vida do hospitalizado, desconforto e angústia, estranhamento do ambiente e carência de referência pessoal. Institucionalizado, o sujeito submete-se a regras, normativas e horários impostos; a perda da autonomia se reflete na exposição do corpo, suscetível e vulnerável aos procedimentos invasivos, com sensação de abandono e, muitas vezes, com tratamento não humanizado. O paciente passa a ser visto “não como um sujeito em sua completude, mas como portador da doença ‘X’, uma visão técnica da doença somente” (IMANISHI; SILVA, 2016, p 50). A esse quadro, junta-se a formação dos médicos e demais membros da equipe, com frequência, orientada de forma a ver um paciente como se fosse somente um conjunto de órgãos ou sistemas – uma visão focada na doença orgânica e não no sentido de adoecer. Tem-se como resultado um atendimento incompleto, que não considera a subjetividade imanente do cliente. Não se pode, porém, perder a perspectiva existencial (MALDONADO; CANELLA, 2003).
Todo esse cenário enseja a necessidade do trabalho do psicólogo, para “compreender o papel das variáveis psicológicas sobre a manutenção da saúde, o desenvolvimento de doenças e seus comportamentos associados”. São, pois, suas atribuições intervir para prevenir doenças, auxiliar no manejo ou no enfrentamento das mesmas e envolver a tríade paciente-familiares-profissional da saúde, garantindo uma comunicação efetiva e afetiva. A falta de comunicação entre equipe da saúde e paciente e seus familiares é característica da despersonalização: o excesso de trabalho nas enfermarias e leitos obstrui ou atrapalha a comunicação, que se torna escassa, e o profissional acaba por não conhecer o indivíduo que assiste (SILVA; FOGER; SANTOS, 2019).
O “entendimento da doença não suprime a dor, nem física nem emocional, mas faz com que o doente seja mais ativo e se comprometa com o tratamento”(BOIZONAVE; BARROS, 2003, p. 142). Cabe ao psicólogo atuar para dirimir a dor, a fragilidade do adoecimento e hospitalização; estagnar as vias da despersonalização na esfera hospitalar; ajudar na humanização do hospital, evitando processos de aniquilamento da dignidade existencial da pessoa hospitalizada; amparar paciente e familiares em suas angústias e temores; motivá-los a superar o adoecer e a despersonalização e comprometer-se com o tratamento; valorizar a afetividade e os vínculos do paciente com seu viver para impedir o esvaziamento das ligações afetivas (CHIATONNE, 2011).
Ao entrar em um ambiente em que predomina o olhar biomédico, com limites institucionais regidos por regras, condutas e normas, o trabalho do psicólogo pode, muitas vezes, resultar deficiente no contexto hospitalar (MEIADO; FADINI, 2014). A figura do psicólogo, porém, representa escuta e acolhimento do indivíduo que sofre e de seus familiares, auxílio e assistência ao paciente no processo de adoecimento, minimização do sofrimento, promoção de mudanças, atividades curativas e de prevenção, conforto e amparo na angústia e tensão. Pauta-se, dessa forma, pelos aspectos do adoecer, das crenças e das fragilidades dos pacientes e de seus familiares (GOULART; CHIARI, 2010).
Ao se deparar com o sofrimento físico e psíquico, o psicólogo precisa ter uma compreensão do indivíduo em sua integralidade, do conflito entre doença e hospitalização, do sofrimento físico, da dor e do mal-estar, da saúde psicológica muitas vezes despercebida e suplantada pelo corpo doente. A tarefa do psicólogo volta-se, pois, para o enfrentamento do processo de adoecimento e a possibilidade de morte, para a adaptação fisiológica, médica, psicológica e existencial, direcionamento humanizado dos diferentes momentos por que veiculam pacientes internados e seus familiares. Por fim, segundo Meiado e Fadini (2014), cabe ao psicólogo auxiliar na reorganização da rotina do paciente e de seus familiares e estabelecer um trabalho pautado na comunicação e oferta de apoio, atenção, compreensão, suporte ao tratamento, escuta e clareamento dos sentimentos e da doença, bem como contribuir para o fortalecimento dos vínculos pessoais e familiares.
Psicólogo André Marcelo Lima Pereira
Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com
REFERÊNCAS
ALMEIDA, R. A.; MALAGRIS, L. E. N. Psicólogo da saúde no hospital geral: um estudo sobre a atividade e a formação do psicólogo hospitalar no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 35, n. 3, p. 754-767, 2015.
BOIZONAVE, L. F.; BARROS, T. M.Ansiedade e depressão: reações psicológicas em pacientes hospitalizados.Aletheia, Universidade Luterana do Brasil Canoas, n. 17-18, p. 135-143, enero/diciembre, 2003.
CHIATTONE, H. B. C. A significação da psicologia no contexto hospitalar. In:ANGERAMI-CAMON, V. A. (org.).Psicologia da Saúde – um novo significado para a prática clínica. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Cengage Learning Edições, 2011.
FERREIRA, A. B. H. Mini-Aurério – o dicionário da língua portuguesa. 8. ed. Curitiba: Positivo, 2010. 960 p. [Verbete: despersonalizar].
GOULART, B. N.; CHIARI, B. M. Humanização das práticas do profissional de saúde – contribuições para reflexão. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 1, p. 255-268, 2010.
IMANISHI, H. A.; SILVA, L. L. Despersonalização nos hospitais: o estádio do espelho como operador teórico.Rev. SBPH, rio de Janeiro, v.19, n.1, jan./jul. 2016.
MALDONADO, M. M. T.; CANELLA, P. B. Recursos de relacionamento para profissionais de saúde: a boa comunicação com clientes e seus familiares em consultórios, ambulatórios e hospitais. São Paulo: Editora Novo Conceito, 2003.
MEIADO, A. C.; FADINI, J. P.O papel do psicólogo hospitalar na atualidade: um estudo investigativo. RECIFIJA – Revista Científica das Faculdades Integradas de Jaú, Jaú, SP, v.11, n. 1, 2014. 15 p.
SILVA, T.; FOGER, D.; SANTOS, P. Despersonalização do paciente oncológico hospitalizado: uma revisão integrativa.Psicologia, Saúde & Doenças, v. 20, n. 3, p. 651-658, 2019.