CULTURA

SÓ MAIS UMA REFLEXÃO

SÓ MAIS UMA REFLEXÃO

Publicada há 6 anos

Por RODRIGO MARTINIANO TARDELI 


“Filho, nunca se relacione com alguém que faria você sentir vergonha de trazer aqui em casa e apresentar para sua família. Não sei por que, mas esta frase nunca saiu da minha cabeça e me marcou profundamente.”


Literato. O professor Rodrigo Martiniano Tardeli 



Meu falecido avô materno era uma pessoa difícil. Para os outros, não para mim. Ele não implicava comigo, não me aborrecia e sempre me tratava com muito amor e muito carinho. Era nítida a sua felicidade quando eu voltava para Muzambinho em visita, depois de ter me mudado de lá há pouco mais de vinte anos.


Lembro-me de uma conversa, ocorrida exatamente há 27 anos, em que ele me deu um conselho (não era dado a me dar conselhos): “Filho, nunca se relacione com alguém que faria você sentir vergonha de trazer aqui em casa e apresentar para sua família”. Não sei por que, mas esta frase nunca saiu da minha cabeça e me marcou profundamente. Vovô não estava se referindo à aparência, claro, pois conhecia o neto e sabia que ele saberia fazer tal julgamento. Estava se referindo a comportamento, valores, hombridade, honra, ética, coisas que resumidamente, para ele, corresponderiam ao “sobrenome”.


Numa outra vez, recordo-me de sua risada, que às vezes chegava às lágrimas, ao dizer: “Coitado, este daí não tem sequer sobrenome!”. Para ele, era um pecado capital. Hoje em dia, talvez, os valores do meu avô nem sejam mais considerados, mas não sou assim. Aprendi a valorizar minha linhagem, com cada uma de suas peculiaridades, a render respeito aos meus antepassados, a conhecer sua história, a conhecer a nobreza e a contribuição de cada uma das minhas muitas e muitas gerações ancestrais. E pensar que a maioria das pessoas sequer sabe o nome dos avós. Sinto falta do meu avô. Queria contar a ele como errei nesta vida ao não dar ouvidos ao seu conselho de outrora. Como conheci a baixeza e a indignidade de pessoas “sem sobrenome”. E agradecer, pois, com este recorte, posso sempre me aprimorar e crescer na maturidade.


***


Comentário acerca do Carnaval. “O Carnaval é hoje a festa mais estúpida do Brasil. Nunca se amontoaram tantos fatos para fazê-la assim. Nem no tempo do entrudo, ela podia ser tão idiota como é hoje. O que se canta e o que se faz são o suprassumo da mais profunda miséria mental. ‘Blocos’, ‘ranchos’, grupos, cordões disputam-se em indigência intelectual e entram na folia sem nenhum frescor musical. São guinchos de símios e coaxar de rãs, acompanhados de uma barulheira de instrumentos chineses e africanos.” Lima Barreto, 1922


***


Anatomia. Por alguma razão, ele parece querer constantemente confirmar um julgamento de sua própria incapacidade ou fracasso. É como se ele estivesse em busca de uma maneira de poder dizer a si mesmo: “Percebes como és fraco, inútil e incorrigível?”. Qualquer pequeno deslize — sempre existirá — torna-se motivo para iniciar um novo julgamento, o que lhe causa uma tristeza e uma autodecepção que o conduzem, inevitavelmente, a novos deslizes, com novos julgamentos, numa espiral cada vez mais descendente. É uma sequência de confirmações de um julgamento prévio já estabelecido e, de certa forma, já consolidado.

No seu diálogo interior, parece acontecer algo como:

— Ah, perdi a hora...

— Mas você é um imbecil mesmo! Vai estragar o resto do dia agora. Melhor você nem levantar dessa cama, porque, com toda a certeza, vai continuar errando e estragando o dia inteiro.

— Será? Não, acho que dá para consertar. Eu corro e resolvo tudo.

— Vai resolver o quê? Agora vai ficar aí sentado feito um idiota? Já devia ter levantado, tomado banho e estar pronto... Não, fica aí filosofando. Seu inútil.

— Bom, eu tenho que ir de qualquer forma... Já nem estou com vontade. Provavelmente você deve ter razão e não vou conseguir resolver isso. Eu devia ter acordado mais cedo... Queria tanto que desse pra começar o dia de novo...

— Se vai, vai logo, seu imbecil! Olha o tempo que você está perdendo com essa conversa mole. Já começou com essas lamúrias logo cedo? “Ai, coitadinho de mim... Queria poder começar de novo...” Começar de novo para fazer a mesma coisa não adianta nada! Vai logo! Vou ficar só esperando a quantidade de bobagens que você vai sair fazendo por aí.


E daí, em contínuo, essa voz fica apontando cada deslize, cada falha, cada equívoco, só para mostrar como ele não faz absolutamente nada certo. Cada pequeno equívoco é apontado e esfregado em sua cara, causando mais angústia e insegurança e, talvez, conduzindo a outros equívocos, que são também apontados como se fossem gigantescos. É uma crescente e eterna desestabilização emocional, criada por ele mesmo. A partir dessa desestabilização emocional, ele passa a fraquejar em certas situações, o que só confirma para o julgador aquela ideia que ele já apresentou: “Seu fraco! Inútil! Imprestável!”


A questão é que este julgamento, apesar de feito por ele mesmo, não é originariamente dele. É um julgamento de que ele acha que é — ou deveria ser, ou já foi — objeto, e de que alguma forma não clara faz sentido para ele. Há a projeção de um julgamento externo para seu próprio julgamento. Ele aceita esse julgamento e acha que merece ser objeto dele, nesses termos.


Eis o que ele precisa encontrar: a origem desse julgamento excessivamente duro para si mesmo. Quem o está julgando, e sob que leis? Qual o crime, ou quais os antecedentes criminais que pesam sobre ele para que esse julgamento deva ser tão rigoroso? Por que razão ele acha que merece ser julgado com tal rigor? O que ele fez, pensou ou é (e aos olhos de quem) para que o martelo da justiça deva acertar sempre no meio a sua testa?


Ele ainda tem nobreza. Tem sangue e não água.


***


Fraternidade. Já fui jovem e cheguei a acreditar nos laços da fraternidade universal, sem compreender que a mesma corrente que reúne vontades pode se transformar em uma atadura sinistra quando aquele que tensiona a corda transfere contra alguém o seu inconcebível poder de desagregação.

Hoje eu sei.


Dentro da dor existe uma sensação cega de ofensa, uma corrente de hostilidade contra o mundo que dificilmente se pode conter.

Hoje eu sei.


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RODRIGO MARTINIANO TARDELI É PROFESSOR UNIVERSITÁRIO NAS ÁREAS DE DIREITO CIVIL E HISTÓRIA DO DIREITO PELA UNINOVE




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