UM POUCO DE

Cada arte...

Cada arte...

Numa sexta - Por Osvaldo Secatto

Numa sexta - Por Osvaldo Secatto

Publicada há 8 anos

De todos os mitomaníacos desfaçados da cidade, Horácio era o mais bem-sucedido. Mas tal sucesso consistia apenas em não ser demitido. E isso só era possível porque o chefe gostava de criatividade e, no fundo — embora não demonstrasse —, se divertia com o funcionário excêntrico. Era um mês de agosto que trouxera todos os seus ventos. E, com os ventos, a potencialização da imaginação do Horácio. Agosto. Aquele seria um mês que todos, inclusive o chefe, jamais esqueceriam.


Quando o Horácio chegou à empresa, o chefe já o aguardava. De pé. Na porta. 

— Ontem foi o buraco que engoliu quase toda a rua e você precisou passar com o carro pela calçada quase raspando nos postes. E hoje? 

— Foi a fatídica sucessão de vermelhos — disse ele, solene. 

— Vermelhos, sei. 

— É verdade, chefe! No caminho de volta do almoço, todos estavam vermelhos na minha vez. Todos! Saía de um, parava no seguinte. 

— Horácio, no caminho mais curto da sua casa até aqui só tem UM semáforo. — Não, não, puseram vários. 

— Horácio, eu conferi. Ontem. 

— Então foi hoje cedo que instalaram... 

— Volte para o trabalho, Horácio.


Era segunda, e segunda-feira era o dia estratégico. Pois o Horácio tivera o fim de semana inteiro para exercitar a criatividade. E acordar tarde. Já na empresa, tentou passar despercebido — pura estratégia —, mas o chefe, sem tirar os olhos dos papéis que analisava, o abordou. 

— Horácio, você está atrasado.

— Chefe, você não vai acreditar....

— Não vou mesmo.

— Mas eu posso explicar. 

— Melhor não. 

— Deixa eu me justificar. 

— Não. — Por favor. 

— Não, Horácio. Volte para o trabalho. É que o Horácio odiava não aproveitar uma desculpa bem inventada.


Na semana seguinte, Horácio apareceu apenas na terça. Matara a segunda. E, ao que parecia, mais alguém.

 — Por que você não veio ontem, Horácio? 

— Não consegui telefonar, chefe — respondeu; e começou a chorar. O chefe sem esboçar qualquer reação, imóvel, aguardando qual seria a da vez. — Minha avó, a que eu mais amava, faleceu. Ai, meu Deus... 

— Encheu os olhos de lágrimas. 

— Qual delas? 

— A mais velhinha.

 — Quantas avós você tem, Horácio? 

— Contando as de consideração? O chefe pôs a mão no rosto, virou-se e saiu.


Todos tomavam um cafezinho, lá pelas 10 horas, quando o Horácio chegou, de mão levantada — ele tinha uma ex- plicação, claro —, e foi em direção do chefe, que se antecipou. — Já sei: aquele mesmo caminhão da prefeitura, pintando a rua inteira, por doze quarteirões. — Não, não. — Ah, não? — Era outro caminhão.


Na entrada da empresa, o porteiro já foi falando: — Ih, Horácio... — O quê? — O chefe não está de bom humor. — Algum dia esteve? — alfinetou. Ao entrar, deu de cara com o chefe. 

— Qual é a de hoje, Horácio?

— Entao, eu...

— Deixa eu adivinhar: foi o portão eletrônico? 

— Exatamente, chefe! 

— Não abria? 

— Abrir, abriu. Não queria é fechar...


Na quinta, o chefe estava sentado na cadeira do Horácio quando este chegou. Batendo os dedos na mesa, um atrás do outro, comentou, sem olhar para o Horácio. 

— Não vai adiantar nada, mas eu vou perguntar mesmo assim. Qual avó morreu de novo: a paterna ou a materna?

 — A de criação.


Horácio chegou a pé, correndo, esbaforido. Era sexta-feira. Passou pela portaria; não havia ninguém. Alcançou o escritório no quarto andar pelas escadas. Pôs as mãos nos joelhos e procurava recobrar o fôlego. Estava diante do chefe, que quebrou o silêncio. 

— Sim, Horácio, diga. 

— Você não vai acreditar, chefe! 

— Estou ouvindo — disse com sua característica voz monocórdia.

— Eu estava vindo para cá, quando um exército de alienígenas pousou no meio da rua e saiu atirando, desintegrando tudo e todos. Destruíram meu carro! 

— Sei. 

— Eu escapei por pouco! — gritou, os olhos arregalados. 

— E de todos os lugares possíveis para se proteger, você escolheu aqui, o escritório, seu local de trabalho? — quis saber, sem mudar o tom de voz. 

— Eu precisava avisar vocês! 

— Acho que desta vez você exagerou, Horácio...

 — É sério, chefe! Verdade, verdade! Enquanto ele insistia, as luzes se apagaram; tudo o que era elétrico se desligou. 

— Com certeza essa queda de energia foi devido ao ataque dos ETs, certo, Horácio? — observou o chefe, de costas para a janela, incrédulo e com o mesmo semblante sem expressão. Ele nem viu os outros funcionários correndo por suas vidas. Atrás dele, a cidade era destruída por naves alienígenas atirando raios para todos os lados. O mundo ia acabar. Numa sexta.

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