LITERATURA

A HORA DO ‘STEAMPUNK’!

A HORA DO ‘STEAMPUNK’!

Um breve panorama da literatura sobre o futuro do passado que vem encantando leitores no Brasil e no mundo

Um breve panorama da literatura sobre o futuro do passado que vem encantando leitores no Brasil e no mundo

Publicada há 8 anos



Por Bruno Anselmi Matangrano


Apesar de vivermos em um período de imenso desenvolvimento tecnológico, parte da Ficção Científica tem se voltado com cada vez mais frequência para nosso passado, ao contrário do que estamos acostumados a imaginar. Acontece que não é apenas de naves espaciais, androides cibernéticos ou criaturas biotecnológicas que se faz literatura especulativa; parte dela desenvolve-se a partir do passado, e esse tipo de história é chamada de retrofuturista. 


Trata-se de um modo narrativo no qual, em vez de especularmos sobre o que ainda está por vir, especulamos sobre como poderia ter sido o futuro de nosso passado, caso algo tivesse acontecido de modo diferente do que de fato aconteceu e outra tecnologia se desenvolvesse no lugar da que se desenvolveu. Steampunk é uma das formas mais desenvolvidas de retrofuturismo, na qual, partindo-se de uma ambientação vitoriana (isto é, essencialmente, do século XIX), muitas vezes underground, superpoluída e decadente (e por isso punk), os autores steampunk reimaginam um mundo onde a tecnologia a vapor não foi suplantada pela eletricidade, podendo assim evoluir até tudo dominar. 


Em meio a esse caos de fumaça e manchas de óleo, e ao som do tiquetaquear de relógios de bolso, dos apitos das locomotivas e do som ritmado de engrenagens onipresentes, habitam, via de regra, grandes heróis da literatura e da história, como Sherlock Holmes, Júlio Verne, Jack Estripador, Napoleão e o Capitão Nemo, convivendo muitas vezes com criaturas sobrenaturais saídas dos clássicos de terror e/ou com seres feéricos, bem como com outros seres humanos e criaturas mecânicas. O steampunk nasce nas décadas de 1980 e 1990, quando são publicadas, em língua inglesa, obras como As Portas de Anúbis (1983), de Tim Powers, Homunculus (1986), de James Blaylock, e a célebre A Máquina Diferencial (1990), de William Gibson e Bruce Sterling. 


Depois disso, logo ganham o mundo, encontrando na França um grande nicho, com publicações como Confissões de um autômato comedor de ópio (1999), de Fabrice Collin e Mathieu Gaborit, e a premiada trilogia Beauregard de Hervé Jubert: Magias Secretas (2012), O Torneio das Sombras (2013) e A Noite dos Egrégoros (2016). Mas mais do que um gênero literário, o steampunk se traduz em uma manifestação estética, estendendo-se por diversas outras artes narrativas, como cinema, videogames e graphic novels (A Liga Extraordinária, de Alan Moore, é um dos exemplos mais consagrados), bem como à música, à fotografia e à moda, culminando, inclusive, em uma subcultura urbana bem organizada, cujos membros se denominam steamers (em inglês) ou vaporistes (em francês).
No Brasil, para além de traduções de clássicos do gênero, como A Máquina Diferencial, e de grandes expoentes mais recentes como a série juvenil O Peculiar (2014), de Stefan Bachmann, Voos e Sinos e Misteriosos Destinos (2014), de Emma Trevayne, A Corte do Ar (2007), de Stephan Hunt, dentre outros, houve também uma onda de obras nacionais de grande interesse. A primeira delas foi a coletânea Steampunk – Histórias de um Passado Extraordinário (2009), organizada por Gianpaolo Celli; logo depois vieram VaporPunk e Steampink, publicadas, respectivamente, em 2010 e em 2011, às quais muitas outras se seguiram. 


Não demorou então para que surgissem os primeiros romances nacionais steampunk, como O Baronato de Shoah (2011), de José Roberto Vieira, Homens e Monstros: A Guerra Fria Vitoriana (2013), de Flavio Medeiros, e Le Chevalier e a Exposição Universal (2015), de A. Z. Cordenonsi, para citar apenas alguns; porém, não podemos esquecer, é claro, do incrível livro A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison, publicado em 2014, vencedor do concurso Fantasy/Casa da Palavra, escrito pelo professor e tradutor Enéias Tavares. Em A Lição de Anatomia, primeiro volume da série Brasiliana Steampunk, o leitor se depara com uma Porto Alegre retrofuturista, onde uma atmosfera de um misticismo romântico e melancólico pode ser entrevista pelo véu dos vapores das máquinas e dos autômatos. Nela, vivem grandes heróis da literatura nacional do século XIX, como Isaías Caminha, de Lima Barreto, Simão Bacamarte, de Machado de Assis, Rita Baiana, de Aluísio de Azevedo, Solfieri, de Álvares de Azevedo, e muitos outros. 


Recriados de maneira cuidadosa por quem gosta, conhece e entende muito de literatura, somam-se a heróis originais, em uma trama policial que mistura elementos de tradição naturalista e decadentista, descritos com uma linguagem trabalhada, ao mesmo tempo erudita e popular, o que nos mostra, por fim, as grandes possibilidades artísticas possíveis de serem alcançadas pelo steampunk, um campo propício (e ainda pouco explorado) para se fazer grande literatura (e grande arte). 


* BRUNO ANSELMI MATANGRANO AUTOR DE ‘CONTOS PARA UMA NOITE FRIA’ (LLYR), É PESQUISADOR, EDITOR, TRADUTOR, ESCRITOR E DOUTORANDO PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)


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