POESIA

Fernando Pessoa: A poesia do "cancioneiro"

Fernando Pessoa: A poesia do "cancioneiro"

Sem negar a riqueza da poesia dos heterônimos de Pessoa, não se pode olvidar o valor de sua poesia dita ortônima, ou, nas palavras do poeta, a poesia do autor ‘na sua própria pessoa’

Sem negar a riqueza da poesia dos heterônimos de Pessoa, não se pode olvidar o valor de sua poesia dita ortônima, ou, nas palavras do poeta, a poesia do autor ‘na sua própria pessoa’

Publicada há 8 anos



Por Lino Marfioli


Muito se tem falado sobre a riqueza da poesia dos heterônimos de Pessoa. Juízo acertado, sem dúvida, porém parece-nos que essa “supervalorização” da poesia dos heterônimos muitas vezes leva a que se obscureça ou não se dê o devido valor à sua poesia dita “ortônima”, ou, como ele mesmo o disse, a poesia do autor “na sua própria pessoa”. É comum que a poesia de Pessoa seja, na sua versão heteronímica, rotulada de “filosófica”. 


Concordamos com tal assertiva e acreditamos que, em se tratando de fazer poesia de “outros”, era imperativo que Pessoa lhes “emprestasse” opiniões, desejos, preocupações e ideias (filosofia), de modo a reforçar o caráter de “fingimento” a que se propôs ao concebê-los e, assim, pudesse dar ao leitor um diferencial entre estes autores não só em termos formais como também no ideário com que iria alimentar a produção poética de cada um deles. 


Poderíamos, esquematicamente, caracterizar a poesia de Caeiro como sendo a de um primitivo genial e inculto, avesso a abstrações, integrado à Natureza e contente com a vida simples e “não-pensada” que levava; Campos, de início, é o poeta da modernidade, da revolta, da provocação, e, paulatinamente, torna-se o poeta do cansaço, da descrença e da desilusão; Reis nos apresenta a vida olímpica, à margem das paixões mundanas e isenta de atribulações — prega a contenção, a contemplação e a aceitação do destino. 


Muito verdadeiro tudo isso, mas mera caricatura; as coisas não são tão simples assim: os heterônimos não são personagens tão inteiriços e unidimensionais como apresentamos acima. Mas voltemos à poesia ortônima, onde podemos observar o mesmo fenômeno: o autor “na sua própria pessoa” também é múltiplo e sua poesia abrange um espectro relativamente grande de preocupações e campos de indagação. Já notamos nos poemas iniciais do Cancioneiro, datados de 1909, quando Pessoa tinha apenas vinte anos, um tema central da obra que viria a assinar com seu próprio nome: “a ânsia de Cousa indefinida”. Some-se a isso um desalento incompatível com a sua condição de moço: “a vida é só o esperar morrer”, desalento que o acompanhará durante toda a sua vida, fruto inevitável de sua implacável lucidez. 


Aliás, diga-se de caminho, os seis sonetos que compõem o Em busca da Beleza já prenunciam grande parte da temática que seria exaustivamente repisada em inúmeras suas composições futuras. A consciência de que 


“Tudo é nada, e tudo 

Um sonho finge ser” o acompanha desde sempre e só vislumbra uma saída: “Só quem puder obter a estupidez 

Ou a loucura pode ser feliz”. 


Nesta fase inicial da poesia ortônima já aparecem poemas de raiz ocultista, cifrados num simbolismo quase inacessível, com o título geral de Além-Deus, portadores de uma indagação profunda, uma ultratranscendência que desce ao questionamento da própria substância conceitual em que repousa o pensamento: 


“Entre o que vive e a vida 

Pra que lado corre o rio? Árvore de folhas vestida — 

Entre isso e Árvore há fio?” e encrespa ao máximo a tensão do estranhamento: “Deus é um grande Intervalo, 

Mas entre quê e quê?... 

Entre o que digo e o que calo 

Existo? Quem é que me vê?” 


Ou ainda nessa nebulosa, quase incompreensível definição do indefinido: 


“Cinzas de ideia e de nome 

Em mim, e a voz: Ó mundo 

Sermente em ti eu sou-me...” 


Ainda nesta fase inicial, rica em estereótipos gestados com finalidade explícita de vincar posições contrastantes entre si, aparecem poemas como Passos da cruz que reproduzem os catorze passos da via crucis de um percurso estético/místico/ existencial ou este outro, de um simbolismo extremo, superlativo e insustentável, como é o caso do poema Impressões do Crepúsculo, que propõe o “paulismo” (termo derivado de paul, que quer dizer pântano) ou ainda um poema como Hora Absurda onde, alegoricamente, temos a discussão estética da necessidade de ultrapassagem de uma literatura acumpliciada com uma tradição rançosa. 


Em todo caso, o que se faz é a defesa do primado da subjetividade absoluta e a denúncia da fragmentação do eu em miríades de células pensantes, angustiadas e sencientes. No belíssimo poema da ceifeira aborda, de forma magistral e axiomática, um tema caro a Caeiro, qual seja, o de que a felicidade mora na inconsciência, mas mesmo aí não se ilude: 


“Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, 

E a consciência disso!” 


Ou seja, só se é possível ser feliz sendo inconsciente, mas é preciso ter consciência da inconsciência para fruí-la, e aquele que tem consciência, é óbvio, não pode ser inconsciente... Jogo de espelhos absurdo onde um não-objeto reproduz uma não-imagem... Há momentos, raros na sua poesia, em que se utiliza da temática dos contos de fada para sublinhar o “ser a vida feliz” um mito, urdido no atemporal, fora do espaço da vida, num território de pureza imaculada, só com fruição possível num passado que não houve. Às vezes, num excesso incomum de franqueza puramente humana, desabafa: 


“Por que fiz eu dos sonhos 

A minha única vida?” 


Acreditamos estar na pessoa de Pessoa (que caminhava tristemente pela Rua do Ouro acima) o motivo da também, parece-nos, “quase” confissão: 


“Além da cortina é o lar, 

Além da janela o sonho.” 


Quem estaria por detrás da cortina? Ophélia Queiroz? — a quem Álvaro de Campos (alter ego de Pessoa) haveria de referir-se metaforicamente como a “dobrada à moda do Porto” que veio fria? Marcadamente erótico só se conhece um único poema de Pessoa (seja na obra ortônima ou na heterônima) e é aquele que termina dizendo que ela, a mulher desejada: 


“Apetece como um barco. 

Tem qualquer coisa de gomo. 

Meu Deus, quando é que eu embarco? 

Ó fome, quando é que eu como?” 


Trata-se, a nosso ver, de mais um gesto teatral, entre tantos do poeta, destinado a mistificar, compor biografia... Por mais generoso que se queira ser com a figurinha simpática de Ophélia (pela qual Pessoa devia, de fato, sentir uma imensa ternura) o que prevalece mesmo é a confissão azeda do Andaime: 


“Ah, quanto do meu passado 

Foi só a vida mentida 

De um futuro imaginado!” 


E nem poderia ser diferente esse sentimento em alguém que se sentia sujeito a uma Missão (é esse o termo que usa, com maiúscula, na carta de rompimento de seu namoro com Ophélia) e que também algures escreveria: 


“Guia-me a só razão. 

Não me deram mais guia.” 


Caso persistam dúvidas sobre seus supostos objetivos de uma vida afetiva simples e prosaica, leia-se o poema A outra e elas se dissiparão. Mesmo nos momentos de aparente descontração, em que observa o gato que brinca na rua, se põe a divagar e sua reflexão nos revela uma consciência lúcida a que não escapa o contraparalelo entre ambos: 


“És feliz porque és assim, 

Todo o nada que és é teu. 

Eu vejo-me e estou sem mim, 

Conheço-me e não sou eu.” 


Outro veio temático que seria explorado na poesia do Cancioneiro é o do ocultismo, principalmente o de feição rosacruciana (chegou-se mesmo a pensar que Pessoa poderia ter pertencido à Ordem Rosa Cruz ou à Maçonaria, fato sem comprovação documental). Preferimos nos alinhar com Jacinto do Prado Coelho que se refere à “inquietação metafísica” de Pessoa como fator responsável pela vastidão de sua curiosidade, à procura, sempre, de respostas para a sua insaciável sensação de mistério, sua sede de certezas com que pudesse aplacar a sua ânsia de dar significado para o estar-no-mundo. 


Mas este ocultismo, esse esoterismo com incidência episódica na sua poesia, não nos enganemos, nele representava uma trilha aberta no território da Gnose e não um apelo a uma transcendência de feição religiosa. Tanto é assim que percute em outro poema — Eros e Psique — e de maneira insofismável, a convicção de que o que busca na realidade já o tem em si, pois era ele mesmo a princesa que dormia. Na poesia ortônima da sua fase adulta predominam o entrevisto, o pressentido. 


Evoca o sutil, o vago, o evanescente... Misticismo, se quiserem assim chamar esta abertura para o sensível, revestido de uma musicalidade aérea, cheia de mágoa, de suave ressentimento... Há uma infinidade de poemas onde se vislumbram vivências tênues, essenciais, inefáveis, ao desamparo da razão, e que, portanto, não se condensam em episódios de vida prática. Poesia aparentemente sem filosofia. Sem filosofia? Como se não fosse o ceticismo a melhor das filosofias... Pessoa albergava em si tendências conflitantes: um ceticismo agudo, medular, patenteado na poesia ortônima, que coabitava com o niilismo calcinante de Álvaro de Campos (que não deixa de ser uma espécie de certeza). É aqui que chegamos à fase dos poemas onde se “Entra mais na alma da alma” e surgem as composições magníficas, com conteúdo indefinido: “Boiam leves, desatentos meus pensamentos de mágoa” que prefiguram o 


“Sono de ser, sem remédio, 

Vestígio do que não foi, 

Leve mágoa, breve tédio, 

Não sei se para, se flui; 

Não sei se existe ou se dói.” Composição rara pela temática na obra de Pessoa é aquela que começa com “Foi um momento / O em que pousaste / Sobre o meu braço, 

Num movimento 

Mais de cansaço 

Que pensamento, 

A tua mão 

E a retiraste. 

Senti ou não?” 


Há aí todo o vago e sutil de uma possível ternura — ternura simplesmente humana, aberta ao convívio — a que Pessoa jamais se permitiu. E no colossal, axiomático Autopsicografia, esculpe com versos lapidares o seu paradoxo de poeta único e incomparável: 


“O poeta é um fingidor. 

Finge tão completamente 

Que chega a fingir que é dor 

A dor que deveras sente.” 


Servindo-nos de uma imagem genial de Álvaro de Campos diríamos: vestiu o dominó que não tinha tirado — personagem de personagem. Já quase ao fim de sua vida e com intuito de homenagear Sá-Carneiro — seu irmão amado em arte e em sonho — faz o soneto Glosa, um verdadeiro teorema existencial onde se expõe vencido e convencido do fracasso de sua existência inútil e inapetente, e diz com cruciante amargura: 


“Quem me roubou a minha dor antiga, 

E só a vida me deixou por dor? 

Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga, 

Me deixou no fogo e no torpor?” 

Quem fez a Fantasia minha amiga, 

Negando o fruto e emurchecendo a flor? 

Ninguém ou o Fado, e a Fantasia siga 

A seu infiel e irreal sabor... 

Quem me dispôs para o que não pudesse? 

Quem me fadou para o que não conheço 

Na teia do real que ninguém tece? 

Quem me arrancou ao sonho que me odiava 

E me deu só a vida em que me esqueço, 

Onde a minha saudade a Cor se trava?” 


Para finalizar, acreditamos ter entremostrado ao menos parte da imensa beleza e do vasto teor desta produção poética labiríntica, ensimesmada, sitiada pela melancolia e o desencanto que foi a vida de sempre do seu autor. Uma vida suspensa e expectante, mas em momentos também misteriosa e desejável, como convite aberto para alguém que nunca o aceitou porque não tinha “casaco bom” por dentro do desejo. 


* LINO MARFIOLI, ESTUDIOSO DE FERNANDO PESSOA, É PROFESSOR APOSENTADO


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