História é uma versão dos fatos. Um único fato tem mais de uma versão, portando mais de uma história. O registro de uma história pode ser a reunião de várias versões dos fatos. A história do descobrimento do Brasil, que era contada nos livros oficiais até pouco tempo, é um exemplo. Ela contava que o Brasil foi descoberto por acaso, quando Pedro Álvares Cabral estava em busca de um caminho para as Índias. Outra versão atual diz que o “descobrimento” foi um projeto para exploração das riquezas naturais do nosso país, financiado não só pelos portugueses, mas também por outros interessados no possível lucro.
Abrindo um parêntese, vale lembrar que, apesar de no português existir o neologismo “estória”, emprestado da língua inglesa e criado para se referir às narrativas populares ou tradicionais não verdadeiras, a partir de 1943, com a organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, a Academia Brasileira de Letras recomendou que apenas a grafia “história” fosse usada, tanto no sentido real quanto ficcional.
Voltando ao assunto principal, a história não ficcional envolve três partes: a contada pelo ator, o participante, aquela contada pelo espectador, o observador, e o fato realmente acorrido. Como a história é contada a partir da visão de cada um, quanto mais pessoas envolvidas no fato, mais versões aparecerem. Seja em relação à visão dos atores ou mesmo dos espectadores.
A coisa se complica ainda mais quando uma terceira, quarta, quinta pessoa entra na história, quando o fato é narrado pelo observador ou participante e essa é reproduzida por eles, contando o ocorrido sempre a partir de seu entendimento dos fatos, mais ainda, baseado na sua própria interpretação. Você se lembra da antiga brincadeira do telefone sem fio? Quem conhece sabe bem como a informação transmitida e retransmitida por diversos emissores e receptores sofre transformações.
A maneira pela qual a história é contada, especialmente na sua forma oral, também interfere na interpretação da mensagem recebida. Vou exemplificar com a hipotética situação de um acidente entre dois veículos ocorrido em uma determinada esquina de uma cidade qualquer. Entre os espectadores desse acidente, dois deles chegam ao lar e vão narrar o fato.
O primeiro chega todo afoito e conta à família: “Minha nossa! Vocês não sabem o que aconteceu na cidade! (tom de voz elevado, quase gritando, esbaforido). Um acidente terrível. Os carros ficaram destruídos. Não consegui nem olhar as pessoas ensanguentadas dentro deles.
O segundo espectador, entrando como de costume ao lar, diz: “Hoje eu vi um acidente no centro (voz calma, tonalidade comedida, semblante sereno). Dois carros se chocaram. Ainda bem que ninguém morreu. Os motoristas ficaram feridos, mas logo foram atendidos pelo resgate”.
É claro que as interpretações dos ouvintes em relação ao acidente nos dois casos serão bem diferentes. Os membros da família da primeira situação, possivelmente, traduziram a história contada como uma tragédia. Imaginaram uma cena de caos no trânsito, talvez tenham ficado até abaladas emocionalmente. Aqueles da segunda família, possivelmente, pela forma tranquila que receberam a mensagem, não tenham dado muita importância ao fato, imaginando um acidente comum, como aqueles que acontecem rotineiramente no trânsito urbano.
A história é contada e recontada de acordo com o entendimento, a interpretação e, em alguns casos, o interesse do narrador. Quando é recontada, ou seja, quando o narrador não participou do fato, nem como autor ou espectador, a chance de sua versão modificar o episódio “real” é ainda mais fácil de ocorrer, para não dizer que sempre sucede.
A verdadeira história acontece nos bastidores. O fato tornado público, seja para uma audiência ampla ou restrita, é moldado de acordo com as necessidades e conveniências do narrador. As histórias oficiais foram e são escritas para contar ao espectador apenas aquilo que é necessário, do ponto de vista do narrador, ou deixar registrado nos anais o fato da maneira que melhor convenha ao autor.
O jornalista e escritor Leandro Narloch mostra isso nas edições de seus Guias Politicamente Incorretos da História do Brasil, da América Latina e do Mundo. Nesses livros ele revela como as histórias oficiais foram desenhadas em cima de um roteiro padrão, um arquétipo. A ousadia e irreverência dos textos estão explicitas já nos títulos, quando o autor joga com a expressão “politicamente correto”, um claro pleonasmo, chamando à atenção para o termo, relativamente atual, criado em auxílio àquele modelo de enredo.
Exatamente por tudo que foi dito é que precisamos ficar atentos aos julgamentos cotidianos que fazemos das histórias que chegam até nós e, principalmente, dos conceitos lançados sobre as pessoas que fazem parte delas.
Nosso julgamento nunca será absolutamente justo e imparcial, é fato. Primeiro, porque quase nunca ouvimos as várias versões dos fatos dos quais tomamos conhecimento. Segundo, porque os interpretamos de acordo com nossa experiência cognitiva e emocional limitada e conforme nossos interesses e conveniência. E, por último, porque dificilmente conheceremos a verdadeira história (e seus motivos), sobretudo quando nos for contada.
Tudo isso concretamente (ou deveria dizer, virtualmente) comprovado pelas redes socias da atualidade. Se o combate às fake news, os avanços tecnológicos e as visitas cada vez mais frequentes às sessões de análise por grande parte dos habitantes do planeta poderá mudar esses fatos, de fato, é uma outra história.
Sérgio Piva
s.piva@gmail.com