Houve outrora, em tempos sem registro pela História, um casal de sábios, inexplicavelmente letrados no conhecimento da natureza e do mundo. Permaneciam isolados dos povos dos homens por vontade própria, mas não lhes negavam conselhos quando pedidos apropriadamente. Quando ambos haviam quase desaparecido da consciência dos homens, deuses surgiram, e com eles inúmeras dúvidas e novas respostas. Ora, viu-se, então, que os deuses se alimentavam da idolatria que recebiam e passaram a disputar poder. Cada povo dera vida a um novo deus, ou a inúmeros ao mesmo tempo, e todos os deuses passaram a combater-se, digladiando à luz do dia e na escuridão da noite. Na terra, eram os homens que guerreavam em seus nomes. Desse modo é que se tornaram autores de inenarráveis atrocidades. A guerra despertou a atenção dos sábios, e Gnay e Niy sentiram o fim dos tempos se aproximar muito antes do que fora previsto, diante de tamanho poder varrendo os céus e abalando a terra. Foi quando anularam sua neutralidade nas coisas do mundo e nos assuntos do homem, pois os deuses eram criações dos próprios homens. Assim desceram lentamente o Monte Soahk, onde viviam, para ter com os povos do mundo. E destes, tão logo convidados — e todos o foram —, muitos compareceram, pois lhes tinham respeito; outros tantos, porém, os ignoraram, eis que lhes haviam, por inteiro, caído no esquecimento — um abismo voraz que habita o coração do homem. Dos que compareceram, alguns entenderam as palavras dos sábios; destes, poucos conseguiram convencer seus povos; e, dos poucos, menos ainda atingiram o fim da tarefa assinada. Muito tempo passou, e os deuses — que haviam sido criados não menos que pela fé das pessoas e pelo poder do Universo, que envolve as vontades intensas —, de servos do desejo humano de alento superior, passaram a senhores de destinos e vidas, bem como dos rumos do mundo. Niy e Gnay não mais se contiveram, e o mundo, que já fora advertido, presenciou um poder assombroso e jamais visto. Céus e terra tremeram ainda mais. Por magia poderosa convocaram os deuses, todos eles, ao Monte Soahk. E de Rá a Maat e Anúbis, de Apocatequil a Inti, de Anshar a Nimrud, de Zeus a Netuno e Marte, e tantos outros, todos ouviram as palavras dos sábios, mas negaram sua validade. Haviam por tanto tempo se entorpecido por suas próprias mentiras que não mais aceitariam a verdade, menos ainda a reconheceriam sob seus narizes e diante de seus olhos. Niy conteve-se; Gnay, não. E ele falou com fúria aos deuses, exigindo que eles se resignassem a seus lugares no mundo e não mais o ameaçassem com seu descuido e ignorância. Ela observou. E os deuses indignaram-se! Já haviam esquecido que pela magia dos sábios foram trazidos àquele lugar — contra a vontade de muitos deles — e contestaram-nos: “Quem sois vós, pequenos homens mortais e servos dos deuses, para dizer aos governantes do mundo o que devem ou não fazer?! Sabereis agora vosso lugar...” E partiram para atacá-los. Niy abandonou sua ternura. Gnay inteirou seu furor. E ambos estenderam a mão para os inúmeros deuses à sua frente. Nesse momento, alheios ao tempo do mundo, tal qual um par de serpentes de fumaça e luz, enormes raios tremularam das mãos dos sábios e envolveram os deuses, que não mais se puderam mover. Do sopro de cada um, tiraram uma semiesfera, que uniram e formaram um globo reluzente. O globo perdeu a luz e tornou-se escuro. Os sábios, então, disseram: “Deuses dos homens. Vós vos olvidastes de que sois servos, não senhores. E que pertenceis aos homens. Abusastes do poder do Universo que, apenas através dos homens, adquiristes. Aqui contemplai vossos juízes e ouvi vossa sentença. Uma vez que sois dos homens, a lei do mundo nos proíbe de vos exterminar. Mas, como juízes e executores, é-nos garantido todo o mais. Vereis o aprisionamento até que vossa sentença seja revogada!"
Os sábios, juntos, empunharam a esfera na direção dos deuses e a soltaram. A esfera flutuou até os deuses, que, imóveis, foram sugados um a um para dentro dela. A terra, os céus e as águas se acalmaram. O homem, porém, não despertou de sua ilusão, e os ecos de tais deuses e seus nomes continuaram a retumbar em sua mente. Os sábios colocaram a esfera num pedestal no meio de seu jardim, de onde se podiam ver as estrelas e sofrer o calor do sol e o frio do inverno. Gnay e Niy se recolheram, então. E desde aquele dia, perdido no passado do tempo, a magia do mundo foi confinada e lá continua até hoje.