FILOSOFIA
NIETZSCHE e a crise da razão
NIETZSCHE e a crise da razão
A crítica radical empreendida por Nietzsche à moral vigente demonstrou o ser humano mesquinho, pequeno, fraco, covarde, omisso e cínico
A crítica radical empreendida por Nietzsche à moral vigente demonstrou o ser humano mesquinho, pequeno, fraco, covarde, omisso e cínico
Por Zé Renato
Além do homem. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Em seu famoso aforismo, conhecido como a morte de Deus, publicado no Brasil ao final da obra Genealogia da Moral, em tradução de Paulo César de Souza, o filósofo germânico prenuncia o século XX e sua grande marca: a crise da razão.
O que vem a ser isso? Voltemos na História da Filosofia. A descoberta do lógos na Grécia Antiga produziu a ruptura com o mito. Em meio a longo processo, narrado com brilhantismo e perfeição pelo helenista Jean-Pierre Vernant em sua obra Mito e Pensamento entre os Gregos, apresenta o início do pensamento propriamente dito. É o momento a partir do qual os humanos buscam romper com a sacralização. Passam a construir sua cosmologia.
À guisa de lembrança, o primeiro Nietzsche aponta nessa situação um problema: a perda do trágico com Sócrates e Platão. Na Antiguidade Clássica e helenística, portanto, vigora a razão como instrumento de desvelo ético e epistemológico do mundo. O domínio romano perpetrado na Grécia Antiga e suas crises internas provocaram o crescimento oficioso de uma poderosa instituição: a Igreja Católica. Essa, no momento de agravamento das condições de manutenção desse império, recebe inicialmente a liberdade de culto pelo imperador Constantino no século II de nossa era. Dois séculos depois, Teodósio, por meio do Édito de Tessalônica, oficializa o cristianismo como religião de Roma.
A queda do império proporcionou a essa instituição se apoderar dos três maiores instrumentos de poder: o conhecimento, a cultura e a educação. Com os quais a Igreja elidiu seus interesses. Em poucas palavras, no chamado período medieval, verifica-se a submissão da Filosofia à Teologia, isto é, foi adequada aos interesses políticos e ideológicos. Exageradamente, podemos afirmar que a Filosofia limitou-se a justificar a “existência de Deus”. Submeteu a ratio ao dogma. Sobretudo via Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, cujas matrizes são, respectivamente, Platão e Aristóteles.
A decadência feudal, a ascensão burguesa, a formação dos estados nacionais e o ressurgimento das cidades e do comércio provocaram dúvidas, inquietações e temores nos europeus. A busca das respostas se deu por meio dos Clássicos. Esses trouxeram à tona a compreensão greco-romana do mundo: a superação do Teocentrismo pelo Antropocentrismo. Agora o humano volta a ser o próprio ator de seu tempo e de seu mundo. Ele é o cerne das perguntas e das respostas; percebida por artistas inicialmente.
A Filosofia também responderá: Descartes traz à luz seu racionalismo, calcado nos gregos antigos, em particular o “cogito” via Parmênides de Eleia. Sua dúvida metódica prenuncia um limiar — o eclipse dos dogmas —, cujo corolário verificar-se-á em meio ao debate com os Empiristas, pois, simultaneamente ao racionalismo cartesiano, Francis Bacon, David Hume e John Locke, em certa medida, avançam numa temática já “desenhada” por Aristóteles: a necessidade da verificação, da observação, do experimento, enfim, do empírico. Salientemos que corroborara com esse evento a mudança da conotação de trabalho, antes “satanizado”, agora glorificado pela Reforma Protestante.
Os séculos XVII e XVIII são permeados pelo debate entre aqueles que defendem o Racionalismo de Descartes e os outros que se posicionam favoráveis ao Empirismo de Bacon, Hume, Locke e, agora podemos incluir, Galileu. A contenda será definida somente no final do século XVIII, em meio ao Alklärung, às luzes da razão, aos filósofos da Ilustração. Em 1781, Immanuel Kant publica a Crítica da Razão Pura, com a qual dirá que: o conhecimento é obtido por meio da experiência, não há dúvida, como afirmaram os empiristas.
Todavia, passam a compor um repertório em nossa razão. Logo, não se trata de defender um ou outro. Conhecer exige a mediação da experiência somada à razão. Kant inicia esse período, cuja conclusão da Filosofia Clássica alemã dar-se-á com Hegel. O filósofo de Stuttgart publica a Fenomenologia do Espírito, com a qual lança as bases de seu pensamento filosófico: o Idealismo. Calcado em Platão e Parmênides de Eleia. A morte de Hegel em 1830 deixa como legado os jovens hegelianos e como se dizia a época a “semente do dragão”.
Dentre eles destacam-se Karl Marx e Friedrich Engels. Ambos reescreveram a dialética hegeliana: para alguns, inverteram-na; para eles “recolocaram a cabeça sobre os pés”. Nasce o Materialismo Dialético. Todo esse percurso histórico filosófico faz-se necessário para verificarmos a transformações pelas quais passou o conceito de Metafísica: inicialmente vista como aquilo que dá ao ser sua essência. Na Idade Média é o encontro com a fé e Deus. Na Modernidade, a mediação entre a fé e a razão. A Metafísica é o substrato da racionalidade, como instrumentos éticos, estéticos e epistemológicos. A razão esclarecida parece estabelecer-se como o alicerce da vida. Fé e pensamento conciliados.
O humano pode dormir em paz. No entanto, em meados do século XIX — em 1844, exatamente — nasce Friedrich Nietzsche, cuja vida não pode ser dissociada de seu pensamento. De formação religiosa, filho de um pastor, tinha sua vida encaminhada para seguir o exercício paterno. Estudou para isso. Porém, ao ingressar nos estudos de Filologia Clássica nas Universidades de Bonn e Leipzig, sua vida muda completamente. O contato com os textos gregos clássicos leva-o à Filosofia, e essa à ruptura total. Nietzsche empreendeu uma crítica radical à moral vigente; demonstrou o ser humano mesquinho, pequeno, fraco, covarde, omisso e cínico. Além disso, a possível “cura”, segundo o filósofo, não passa pela via coletiva. A vida não vale a pena ser vivida, dentro da mediocridade imposta. O mundo não é para os fracos, diz Nietzsche.
Os fracos são aqueles desprovidos de virtù: virilidade, coragem, força para realizar vontades e desejos, tal qual os guerreiros espartanos, que brindavam à morte no momento da batalha. Inicialmente, Nietzsche desenvolve a tese de que o trágico da cultura grega, essencial para a reconstrução do humano, estaria na música do compositor Richard Wagner, a qual, permeada por mitos germânicos, na avaliação do filósofo, trazia o Dionisíaco, o instinto criador, caro aos gregos trágicos. A “redenção” da vida, para Nietzsche, dar-se-ia pela Arte, pela revigoração da cultura decadente da Europa. Sua obra O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música apresenta os conceitos de “Apolíneo” e “Dionisíaco”, ou seja, o primeiro é o equilíbrio e o segundo o instinto criador, o êxtase.
Em suas Considerações Intempestivas discorre criticamente acerca dos conceitos de História e o cenário da Educação europeia; contudo, em Verdade e Mentira no sentido Extra-Moral, apresenta uma de suas teses centrais: a moral é mera conveniência, a fim de estabelecer códigos de conduta com os quais o humano enfraquece, no sentido de abrir mão de seus instintos e quereres, tornando-se doentio, culpado e domesticado. Verdade e mentira são apenas palavras, diz-nos o filósofo, a linguagem visa dar ao homem a pretensa e equivocada ideia que ele é centro do mundo. Nietzsche salienta: “Se pudéssemos conversar com a mosca, certificaríamo-nos de que ela acredita ser o centro do universo voante.” Após publicar Para Além de Bem e Mal e Genealogia da Moral, Nietzsche escancara suas convicções: ao humano cabe viver para além desses valores decadentes, não reproduzir a moral gregária, de rebanho, portanto, viver acima dos valores citados que apenas enfraquecem e domesticam.
Assim, continua ele, o filósofo é o médico cuja tarefa é realizar a genealogia da moral, a fim de verificar e destruir esse código, pautado nos valores judaico-cristãos, que tiram os instintos criadores, a vontade e o querer, em troca dos “ideais ascéticos”. Em sua obra Assim Falava Zaratustra traz à luz o Übermensch, o além do homem; que é quem trilhará a ponte que separa o humano de sua meta, para além de bem e mal. Critica o ressentimento, o fingir, a covardia, a pretensa salvação espiritual em prejuízo da vontade. Assim voltamo-nos à crise da razão e ao aforismo de Nietzsche, propalado como “A Morte de Deus”: parece-nos uma grande metáfora.
A morte de Deus é o falecimento da razão esclarecida. O homem louco sai em busca da razão, dos debates na ágora. Não encontra nada, na medida em que fora substituída pelo dogmatismo. Ao invés de exercê-la como instrumento de desvelo do mundo, das coisas e de si, a razão fora transformada num criador de dogmas e profissão de fé, cujo fundamentalismo, característico dos séculos XX e XXI, são a forma mais acaba e exacerbada. A crise da razão, prenunciada por Nietzsche, portanto, é o eclipse do Iluminismo, do lógos como dessacralização do cosmos. Voltamo-nos ao niilismo passivo, o qual nos cabe apenas lamentar, resmungar e esperar uma “salvação sobrenatural”. Acometemos-nos de uma culpa, com a qual dirigimos nossa vida e pseudoconvicções, nutridas de rancor e ressentimentos, calcadas na frustração e na negação da vida, no sentido trágico e clássico, dos valores que deveriam norteá-la e reafirmá-la, com base em nossos quereres e desejos. Uma vida autêntica, parafraseando Heidegger.
A Ciência não elucida também professa fé. O mundo mecanizado e tecnicizado reforçam essa tese. Conclui o filósofo: “Eu venho cedo demais, disse então, ainda não é meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens."