ÓPERA
Trocar Produções entre teatros de ópera não é prática saudável
Trocar Produções entre teatros de ópera não é prática saudável
‘Sem o exercício de criação e sem experimentação, não se terá a consolidação da ópera no Brasil como uma forma de expressão heterogênea e distribuída nacionalmente’
‘Sem o exercício de criação e sem experimentação, não se terá a consolidação da ópera no Brasil como uma forma de expressão heterogênea e distribuída nacionalmente’
Ópera. Palco do Teatro Municipal de São Paulo
Por Cleber Papa
No início dos anos 90, Rosana Caramaschi e eu idealizamos o que poderia ser um processo de longa duração para a difusão da ópera. O raciocínio foi bem simples e rascunhado numa série de possibilidades que começariam a se concretizar em 1996 — há 20 anos, portanto — com uma série de recitais durante uma exposição itinerante sobre a vida de Carlos Gomes em vários estados Brasileiros.
O projeto Carlos Gomes - Vida e Obra abrigaria ainda a produção de Il Guarany na The Sofia National Opera e o compromisso de realizar os demais títulos do compositor no mesmo regime de coprodução com a companhia búlgara. O desejo original foi materializado por estas ações iniciais e outras nos anos seguintes, inclusive a produção de Fosca e Maria Tudor, do compositor, até o momento em que a crise econômica de 98, uma indigesta mistura de crise asiática com crise russa, tornou impraticável qualquer atividade cultural em moeda estrangeira. Trouxemos a produção brasileiro-búlgara de Fosca para o Brasil, circulando-a em São Paulo, Belém e Manaus. Como derivação, criamos (Rosana e eu) o Festival Amazonas de Ópera em 1999, atendendo o então secretário de Cultura que nos solicitou reformular o Festival de Música de Manaus, nos dando total liberdade criativa. No ano seguinte, além da nova edição do Festival, levamos uma produção de Il Guarany para o Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, em comemoração aos 500 anos dos Descobrimentos Portugueses.
Além disto, trouxemos para o Teatro São Pedro, em São Paulo, uma versão das Bodas de Fígaro realizada em Manaus, o que marcou oficialmente a destinação do espaço como um Teatro de Ópera (ele já havia sido reinaugurado com uma versão de La Cenerentola, feita pela OSESP). Pouco tempo depois nascia em Belém, no Pará, o Concurso Internacional de Canto Bidu Sayão, com prêmios girando em torno de R$ 100 mil, realizado nos dez anos seguintes, inclusive em Minas Gerais. Manaus continuou sem a nossa participação e iniciamos o Festival de Ópera do Theatro da Paz com os mesmos princípios.
Tanto um quanto outro foi criado para avançar na geração de conteúdo, na pesquisa de repertório, na quantidade de produções, na manutenção de um repertório, nos processos de circulação internos e externos. Acreditávamos que um trabalho regular, que superasse as barreiras impostas pelas mudanças de administração nos governos, seria o caminho natural para o desenvolvimento do projeto. Talvez com excesso de otimismo imaginássemos que o crescimento se daria pelo desafio de ampliar o que havia sido feito no ano ou período anterior, com o engajamento dos profissionais e do público. Dirigi e produzimos o Festival do Pará por seis anos. Inauguramos o Teatro da Paz com uma versão de Macbeth realizada em conjunto com a Dorset Ópera onde estreamos.
Depois a produção foi emprestada para São Paulo. Simultaneamente, viajamos de norte a sul no Brasil buscando reconhecer novas possibilidades. Tentamos desenvolver processos de circulação em parcerias com vários teatros, reunimos maestros, secretários em fóruns conjuntos nos âmbitos federal, estaduais e municipais. A cada tentativa de circular títulos detectamos resistências de toda ordem, inúmeras dificuldades técnicas, artísticas e formais para desenvolver a ideia aparentemente tão óbvia. Variantes do processo impedem in Ópera ‘Sem o exercício de criação e sem experimentação, não se terá a consolidação da ópera no Brasil como uma forma de expressão heterogênea e distribuída nacionalmente’ inclusive a circulação privada pelos altos custos, pelas dificuldades de se estabelecer padrões de qualidade, os patrocínios sem leis de incentivo inexistentes, aqueles com lei de incentivo impeditivos para remunerar legalmente o lucro do empreendedor.
Só teria alguma chance uma companhia privada, com recursos públicos federais ou mesmo com patrocinadores utilizando também recursos federais, que levasse estes títulos às cidades nos vários estados, revivendo o modelo do passado em que companhias viajantes faziam estes trajetos interestaduais. Mesmo assim, entretanto, este modelo teria grandes dificuldades de sobrevivência. Alguns anos mais tarde houve uma tentativa semelhante que naufragou por razões de gestão. Não conseguimos formular no Brasil um modelo de circulação das óperas no modelo convencional. Registre-se que algumas gestões do Teatro Municipal de São Paulo, até 2012, conseguiram parcerias de troca com o Palácio das Artes, em Belo Horizonte e com o Municipal do Rio de Janeiro.
Destas tentativas, houve, de nossa parte, um grande aprendizado, o que levou à criação de um modelo de circulação para difusão da ópera que chamamos de Ópera Curta. Esta uma experiência bem-sucedida que se encontra em curso no Estado de São Paulo desde 2009, como um programa regular da Secretaria de Cultura, resultou numa Companhia de repertório que já se apresentou mais de 250 vezes em cerca de 80 cidades diferentes e tendo atingido mais de 130.000 pessoas, até agora. Nesta perspectiva de difusão e formação de público, além de aperfeiçoamento profissional, tem sido um sucesso absoluto. Este é um ano emblemático para a ópera. Completam-se 180 anos de nascimento de Carlos Gomes em Campinas, 120 anos da sua morte em Belém e, para nós, 20 anos do projeto Carlos Gomes - Vida e Obra. Mas, analisando as propostas de 26 anos atrás, ou mesmo comemorando neste ano os 20 da realização do projeto Carlos Gomes - Vida e Obra, a sensação é de que não mudou muita coisa. Todos os esforços para ampliar o mercado de trabalho, o aperfeiçoamento das vozes, não se traduziram em grandes transformações.
Excetuando os dois festivais, o de Manaus que virou uma incógnita quanto ao futuro, e o de Belém sem qualquer alteração no modelo original, nada de novo no cenário. O restante não significou qualquer mudança no mercado de trabalho. Vá lá, numa leitura grosseira, a mudança de regime de contratação do Theatro Municipal de São Paulo estabilizou cantores e músicos. Mas a ópera depende de encenadores, diretores de palco, maestros, figurinistas, cenógrafos, cenotécnicos, visagistas (caracterizadores), costureiras e uma série de outros profissionais para que aconteça. No entanto, tudo isto sugeriu uma conclusão bastante esclarecedora na nossa visão. Os grandes teatros e festivais precisam desenvolver conteúdo novo e exibi-lo nos seus espaços tradicionais.
Somente novos conteúdos ampliarão mercado, criando oportunidades para novos cantores, diretores, regentes e demais criadores, inclusive estimulando a produção em outros centros. Sem o exercício de criação e sem experimentação, não se terá a consolidação da ópera no Brasil como uma forma de expressão heterogênea e distribuída nacionalmente. Os grandes teatros do eixo sudeste precisam também gerar conteúdo por razões mais óbvias ainda. É da sua competência formar profissionais e aproveitá-los em conjunto com aqueles de excelente nível artístico que o país já possui e que estão alijados do processo por razões incompreensíveis. Também é absolutamente necessário criar mecanismos para a produção de novos títulos estimulando composições regulares de ópera, comissionando vários compositores simultaneamente. Isto não significa deixar de realizar coproduções internacionais como fez o Municipal com Bologna em 2012, trazendo ao Brasil uma produção de Bob Wilson.
Ou mesmo trazer espetáculos prontos como trouxemos da França e promovemos a doação de cenários e figurinos para o mesmo Teatro Municipal pela Prefeitura de Paris. Trazer cantores e diretores estrangeiros, entre outros profissionais, é também esperado e bem-recebido, sem distorção de prioridades. A decisão de não circular títulos entre os grandes teatros, nem mesmo na realização de produções conjuntas, pode e deve facilitar os fluxos de turismo interno e externo, talvez até ajustando agendas num primeiro momento para evitar sobreposições de estreias. Investir em ópera é estratégico pelo modelo de produção que pode ser utilizado para formar pessoas nos mais diversos níveis de produção e habilitando-os ao exercício de outras atividades nas áreas correlatas.
Este pressuposto é verdadeiro por causa do número de profissionais envolvidos com o teatro de ópera e o largo espectro de conhecimento necessário para formar pessoas. Se não houver uma visão concreta sobre o que representa a ópera sob o ponto de vista das Economias Criativas, se não tivermos modelos que permitam o acesso à ópera nos teatros dos Estados, se não se ampliar a construção de repertório com nossas características e visão artística nacionais, quem perde não é apenas a ópera. Perdem todos os envolvidos na cadeia produtiva e principalmente o público nas suas inúmeras vertentes.