ARTIGO

Ensaio sobre a jornada do herói ou uma análise antropológica do sucesso de Coringa (2019)

Ensaio sobre a jornada do herói ou uma análise antropológica do sucesso de Coringa (2019)

Por: Gabriel Goes da Silva, Graduado em História. Professor na rede pública de ensino

Por: Gabriel Goes da Silva, Graduado em História. Professor na rede pública de ensino

Publicada há 4 anos

Em outubro de 2019 foi lançado no Brasil o filme Coringa, com direção de Todd Phillips, e protagonizado por Joaquin Phoenix. O objetivo deste breve artigo será o que de analisar o repentino – na mesma proporção que estrondoso – sucesso alcançado pelo longa.

            Poderíamos responder ao enigma proposto dizendo que o sucesso do filme se baseia na abordagem diferente dada ao personagem. Não estaríamos errados, mas estaríamos sendo superficiais.

            Tomando o longa-metragem como objeto de estudo antropológico, precisamos comentar sobre o conceito de herói, e a construção do seu mito.

            Heróis, no geral, passam por jornadas. Estas podem começar com uma mensagem por computador – tal qual Neo, de Matrix – ou ainda como uma carta entregue por uma coruja – vide Harry Potter. Após a mensagem entregue, cabe ao herói atender ou não ao chamado.

            Um momento de indecisão, em que Frodo – de Senhor dos Anéis – não se sente capaz de destruir o Um Anel na Montanha da Perdição, ou uma dúvida que faz Peter Parker perder seu tio, assassinado.

            Com o chamado aceito, passamos para o estágio da mentoria, em que um(a) mentor(a) surge e auxilia o recém iniciado herói a entender todo o novo mundo ao qual será exposto e o qual deve conquistar. Pensemos em Dumbledore para Harry Potter, ou Tony Stark sendo quase um pai para Peter, nos filmes da Marvel Comics.

            A fase da mentoria é superada pelo momento da travessia, no qual o herói se vê frente a um desafio que precisa ser realizado. A construção da primeira armadura do Homem de Ferro, ou os anos de estudos treinos para que Bruce Wayne se torne o cavaleiro de Gotham.

            A metamorfose do herói acontece quando ele – metaforicamente ou não – desperta para o que há de real. Quando Neo sai da Matrix pela primeira vez, ou quando o Homem Aranha finalmente entende o significado da frase “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.

            Entre dúvidas e provações, enquanto constrói seu mito o herói passa pela apoteose da sua vida, enfrentando a figura mais poderosa que conhece, recomeçando com algo a mais, uma habilidade ou uma postura. Pensemos no domínio da Matrix que Neo consegue ou na nova postura da Sociedade do Anel frente a tentação vinda do Um Anel.

            Com o desafio vencido, um novo horizonte surge na visão do herói, onde ele pode regressar com o sucesso, levando a benção da esperança para as pessoas, ou comemorando com elas a glória da sua conquista.

            Se para você, nobre leitor, esta fórmula soou conhecida ou comum, é porque realmente ela pode ser entendida desta forma. Este é, como intitula Joseph Campbell, o monomito.

            No seu livro de 1949, chamado O herói de mil faces, Joseph constrói (ou talvez, observa) o arquétipo do herói ao longo da História e a partir de várias culturas diferentes, pontuando temas recorrentes nas aventuras, que compõem, por sua vez, nosso imaginário coletivo para as epopeias de figuras lendárias.

            Tais figuras são heróis, mas não necessariamente apenas heróis – e aqui retornaremos ao plot de Coringa – então surge um padrão para a criação destas figuras heroicas, que pode ser usado para a construção de vilões também.

            Comparando o Coringa do Phoenix com o de dois dos seus antecessores, podemos desenvolver a ideia: Heath Ledger e o seu Coringa de 2006, a despeito de todos os seus vários méritos, não sustentaria um filme solo, tal qual o Coringa psicopata de Jared Leto, visto em 2016.

            Em ambos os casos, os personagens não passam por um desenvolvimento, tornando difícil que surja uma empatia para com o público, que seria, por sua vez, capaz de dar um maior fôlego para a produção.

            Este é o mérito de Coringa. Com uma impecável atuação de Phoenix, aliada a uma muito competente direção de Todd Phillips, encontramos um vilão que responde ao chamado. Ao chamado de herói.

            Arthur Fleck, o alter ego do nosso palhaço em questão, entende a si mesmo como um herói, e narra sua vida justamente como a jornada de uma figura lendária heroica. 

Nós vemos um Coringa passando pela fase da indecisão, encontrando um mentor no mundo do humor, sendo alvo de uma metamorfose – quase kafkiana – e enfrentando não uma, mas duas das figuras mais importantes e poderosas da sua vida. 

Tudo isso enquanto é ofendido e atacado por uma Gotham City dos anos 1980 em vias de se tornar abertamente caótica, e aparentemente vazia de compaixão ou caridade. A jornada de herói protagonizada pelo nosso vilão é coroada com a convulsão que acomete Gotham, na qual seu rosto de palhaço é exaltado, como um símbolo de esperança.

A “jogada de mestre” do filme é construir um personagem que é o próprio modelo do mal na mitologia do Batman a partir do modus operandi casualmente destinado para aqueles que agem em nome do bem.

Com caráter inovador, Coringa causa uma pequena revolução no coração do meio heroico no cinema, provando nunca ter fim a capacidade humana de reinventar mitos.

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