ARTIGO

Enganosamente

Enganosamente

Por Sérgio Piva

Por Sérgio Piva

Publicada há 4 anos

Naquele quarteirão havia poucas casas edificadas e apenas uma habitada, de cor marrom, posicionada à direita de um ponto de ônibus, para quem olha de frente, cuja parede frontal lembrava cristais de quartzo, quase tão brilhantes quanto os olhos do sujeito bem vestido que estava posicionado como um guarda real britânico ao lado do pilarete de concreto pintado em azul e com letras brancas sobrepostas, escritas na vertical, formando a palavra circular. 

Era Dauter, à espera do ônibus circular que o levaria até a rodoviária e, de lá, para seu destino final, a casa de Nadesda, garota a quem pediria em namoro pessoalmente, quase à moda antiga, depois dos longos meses de encontros virtuais pela internet. 

Só não foi mais britânico porque havia chegado vinte minutos antes do horário previsto para a passagem do circular pelo ponto no qual matinha vigília solitário. No local, somente ele e os pensamentos que viajavam de avião. 

Agora, faltavam apenas cinco minutos até a chegada do transporte. Mais trinta olhadas no relógio e faltavam quatro minutos. Maldita lei da relatividade, sussurrou no ouvido dele a meditação a jato.

Duzentas e noventa e cinco olhadas depois, já eram passados dez minutos do horário. O circular estava atrasado. Desde que começara a pegar o ônibus naquele ponto, logo que mudou para o novo bairro, nunca tinha acorrido um atraso no ônibus que ultrapassasse os cinco minutos.

Talvez fosse o destino dizendo para não viajar, aconselhando-o a não tomar a atitude que estava prestes a concretizar, impelido pela energia inerente às entranhas dos apaixonados. 

Poderia ter acontecido coisa pior. O circular poderia ter-se acidentado e ele se livrado da morte ou de defeito físico irreversível provocado pelo desastre. O destino haveria sido complacente com ele, lhe dado uma nova chance. 

Mas qual seria o pagamento por ter sido sorteado na roleta da fortuna? Retornar a sua casa e continuar falando com a amada apenas pelo computador? Repensar sobre a decisão que parecia certa em sua cabeça? Adiar o encontro? Cancelar definitivamente a intenção?

A dúvida neste momento tomava conta do ser. Dauter, Dauter,
 Dauter, pense no que vai fazer, falava ele para si, ao mesmo tempo em que se repreendia, como fosse possível olhar para dentro dos próprios olhos e ver a angústia sombrear a luz que há pouco iluminava sua alma e reluzia em seus olhos.

Ainda que tivesse sido livrado de uma fatalidade, parecia injusto ter sua felicidade adiada ou anulada, sem saber de fato o que o destino reservava para a vida dele. Questionava-se sobre quais motivos teria oferecido para que a vida o punisse daquela maneira. 

No meio do turbilhão de indagações, buscando a causa do seu infortúnio, Dauter não percebera que o ônibus circular havia contornado a esquina e estava a poucos metros do ponto.

Somente voltou a si quando o veículo freou e o estampido do ar abrindo a porta automática, já escancarada a sua frente, causou-lhe um susto tamanho, fazendo-o quase saltar para trás, como quando nos deparamos com algum monstro nos pesadelos.

Ainda atônito, sem conseguir sair do lugar, ouviu o motorista perguntar se não ia subir. Olhou em direção à porta e perguntou sobre o motivo do atraso. O motorista esclareceu que havia furado um pneu e o ônibus precisou ser substituído às pressas. 

“Nadesda, por que estás tão longe?” Indagou em voz alta. “Como é que é? Vai subir ou não vai?” Perguntou o motorista. “NÃO”. Respondeu apenas isso e virou-se em direção ao caminho de casa. 

Enquanto olhava fixamente para o trajeto a ser percorrido, um último pensamento o alcançou: até aquele dia nunca tinha presenciado um atraso, muito menos ouvido falar de pneu furado de um circular. Alguma mensagem havia nisso. Dauter, Dauter, Dauter, murmurou mais uma vez o pensamento em seu ouvido. 

A mente não desmente somente, frequentemente, desmedidamente, curiosamente, estrategicamente, e, enganosamente, quase sempre, entrementes, mente. Basta um susto sequer para sacudir a alma e possibilitar que o medo se instale lentamente.

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