Uma das características marcantes da Inquisição, a par do fundamentalismo e intransigência teológica, foi o monopólio dos inquisidores de investigar, acusar e punir – reunindo em uma só pessoa três funções que, para garantir um mínimo de isenção, deveriam ao menos guardar as aparências, pois até a defesa era negada ao “herege” em julgamento. A Igreja já abandonou tal concentração de poderes, mas, ainda nesta quadra do século XXI, o modelo medieval persevera, em recidiva que afronta a ideia de justiça. Guardadas as proporções e as dimensões, o chamado “pacote anticrime” recém-aprovado pelo Congresso restabeleceu a unicidade centrípeta e conferiu ao Ministério Público a plenipotência da escoteira condução de um arremedo de processo penal em que, além de sua função precípua de acusar, também exerce a de investigar e “sentenciar”.
A heterodoxia jurídica leva o nome de “acordo de não persecução penal”, criado pela Lei N.º 13.964/19, que introduziu o Art. 28-A no Código de Processo Penal: “Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal...” O “investigado”, que não pode ser reincidente nem ter cometido a infração no ambiente doméstico, compromete-se a uma série de obrigações, como reparar o dano causado, prestar serviços à comunidade e “renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime”. Assinado o acordo, que já alberga em si a sentença, caberá ao juiz homologá-lo – exceto, por óbvio, se não atender às exigências formais da lei.
No nosso ordenamento, e de todo o mundo civilizado, o direito de punir é competência reservada ao Judiciário. Ao Ministério Público cabe acusar. O juiz, cotejando as proposições da acusação e da defesa (tese e antítese), filtrando as provas e contraprovas, firma sua convicção e profere a sentença (síntese) com âncora na legislação que define o crime. Mas agora aqui temos a “justiça três em um”.
O acordo segue a doutrina da “transação penal”, que dispensa o processo e evita a prisão do investigado, e já ingressara no Direito no Brasil, pela Lei N.º9.099/95, que dispôs sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, cujo Art. 76 determina que “o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na proposta”. O diferencial é que, embora ambas as legislações se valham da expressão “o Ministério Público poderá propor”, enunciando uma sugestão e não um pacote decisório, no caso atual é pura retórica, pois o “Parquet” já não propõe – sequer depende de inquérito policial, em rigor faz o seu –, cuida de todo o processo e lavra a “sentença”. Serviço completo.
O “acordo de não persecução penal” nada mais é que a legalização da Resolução 181/17 do Conselho Nacional do Ministério Público, a qual, sem previsão legal, autorizou promotores e procuradores a desistirem da ação penal em troca da confissão de suspeitos e assinatura de um termo de restrição de direitos. A Ordem dos Advogados do Brasil prontamente reagiu a essa “novidade”, apontando-a como inconstitucional ao STF, mas a prática não avalizada pela lei prosseguiu a ponto de até o final de 2019 terem sido lavrados acima de mil “procedimentos investigatórios criminais” seguidos do “acordo de não persecução penal”. De lege ferenda, acabou positivada! Inscrito agora no Código de Processo Penal, o artifício reafirma o brocardo error communis facit jus, o erro continuado se transforma em direito.
Ademais, constitui um contrabando jurídico do plea bargain, instituto muito visto nos seriados americanos, pelo qual a acusação negocia a pena com o réu que confessa o crime e leva o papelório para a simples homologação do juiz. Paradoxalmente, o Congresso havia recusado essa proposta plotada no “pacote anticrime” preparada pelo Ministério da Justiça.
Até se poderia aventar em favor desse procedimento que, prescindindo das penas de privação de liberdade, avança na contramão do festival de condenações e prisões que demarcam o sistema penal nos dias de hoje. Porém, mais forte deve ser o zelo e a salvaguarda da equidade para conter cada protagonista da cena jurisdicional em sua esfera de atuação, em nome do princípio do devido processo legal que caracteriza o Estado Democrático de Direito.
*Ricardo Toledo Santos Filho, é criminalista e vice-presidente da seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil