ARTIGO

Procedimental

Procedimental

Por Sérgio Piva

Por Sérgio Piva

Publicada há 4 anos

Recebeu a notícia por meio de mensagem do aplicativo de celular. A amiga Deodora estava internada na Santa Casa há dois dias, depois de passar mal, sem outros detalhar sobre o que havia ocorrido.

Ernestina ligou para o celular de Deodora. Chamou, chamou, chamou, até cair na caixa postal. Preocupada, resolveu fazer uma visita à amiga no hospital. Almoçou, vestiu-se e ligou para o mototáxi, que logo apareceu.

Na portaria, falou o nome completo da amiga e foi autorizada a entrar, mesmo não sendo horário de visitas, em razão da idade da paciente, o que permitia que tivesse acompanhante em tempo integral.

Ao adentrar o quarto, avistou duas camas ocupadas por pacientes e, ao virar-se para a direita, viu Deodora na terceira cama, junto à parede descascada. Quando a amiga reconheceu Ernestina, abriu um sorriso e ensaiou um salto, que não foi possível naquela situação.

Ernestina, falando baixinho, já que os outros pacientes estavam dormindo, iniciou o interrogatório costumeiro feito a todos aqueles que recebem visitas no leito hospitalar, sobre o que aconteceu, como, quando, onde e acerca dos porquês habituais dos inquiridores de passagem.

Após um longo tempo de justificativas, com frases intercortados por “então” e “como pode?”, Deodora pediu que a amiga a ajudasse a se levantar para ir ao banheiro e aguardasse seu retorno.

Assim, esperando o retorno da amiga, Ernestina permaneceu sentada pacientemente na cama da paciente original. O relógio digital, afixado no alto da parede branca do quarto, marcava 16 horas e 24 minutos quando Mateus, auxiliar de enfermagem, entrou no quarto empurrando uma cadeira de rodas utilizada nos deslocamentos de pacientes dentro do hospital.

Estava usando uma calça jeans desbotada pelo tempo, tênis branco surrado, provavelmente pelo uso contínuo, e uma camisa amarela sob o jaleco branco com uma mancha pálida na gola direita, cuja roupa não escondia o corpo franzino, aparentando não possuir força suficiente para conduzir pessoas pesadas naquela cadeira de estrutura igualmente insuficiente. 

O auxiliar estacionou ao pé da cama e, olhando fixamente para Ernestina, disse: “Senta aqui, vovó, vamos dar uma volta”. Ela hesitou por alguns segundos, mas movimentou lentamente seu corpo volumoso até pisar no chão e sentar na cadeira ofertada. 

Logo no primeiro impulso para tirar a cadeira do lugar, Mateus já percebeu que o passeio oferecido não ia ser fácil. Realizado o empurrão inicial, a cadeira começou a deslocar-se vagorosamente pelo quarto até acessar o corredor principal da ala hospitalar.

Já no meio do corredor pôde avistar seu maior desafio. Há poucos metros teria início a subida de uma rampa longa, por onde deveria subir com sua passageira, que apreciava a pequena viagem olhando o interior de todos os quartos por onde passava, cumprimentando quem encontrasse pelo caminho.

No pé da rampa, com a cadeira posicionada, recuou aproximadamente um metro para o impulso necessário e lá se foi. Não subiu dois metros quando a cadeira perdeu a pouca velocidade que tinha alcançado e começou a retornar de ré. Apenas fez força para reduzir a velocidade contrária até chegar novamente ao início da rampa.

Olhou para os lados à procura de ajuda sem encontrar qualquer colaborador. Quando a gente precisa não aparece ninguém, pensou ele. Tentou novamente a escalada, mas sem sucesso. Passados poucos minutos, apareceu o salvador da pátria. Outro auxiliar de enfermagem, porém com porte físico avantajado e suficiente para cumprir a missão.

Com os dois empurrando a cadeira, logo o topo da rampa foi acessado. Em seguida, aproveitando as mãos e os músculos extras, pediu ajuda para subir a outra rampa que se iniciava no segundo andar do prédio. Novamente, missão cumprida. O ajudando se afastou, retornando às suas atividades ordinárias.

Na verdade, ainda faltava mais um lance de rampas, o último, até o terceiro andar, destino final da odisseia hospitalar. Ficara com vergonha de pedir o auxílio do colega para subir mais um lance.

Reuniu as forças que não tinha e as que sonhava em ter, provocando o costumeiro e fundamental impulso, e encarou o desafio, empurrando ladeira acima, num esforço descomunal, o corpo volumoso de Ernestina, até conseguir alcançar o piso superior.

Deu uma pausa e foi respirando vagarosamente, até voltar completamente o fôlego, a consciência e a memória de onde realmente estava. Olhou para frente e percebeu que em mais alguns metros poderia acessar a porta que o afastava do ponto de chegada.

Abriu um sorriso vitorioso, sentindo força verdadeira em seus braços, e empurrou a cadeira até abrir a porta e parar três passos adiante. Olhou para Ernestina e falou em tom de felicidade: “Chegamos vovó! Vamos fazer o exame. Onde a senhora sente dor?” 

Ernestina que permanecera calada até então, com o semblante surpreso, revelou: “Não dói em lugar nenhum, não estou doente. Estou muito bem, aliás”. “Como assim?”, perguntou mais surpreso ainda o auxiliar de enfermagem, “Porque a senhora está internada, então?”.

“Não estou internada meu filho, só vim visitar minha amiga Deodora. Ela que está doente”, explicou pacientemente Ernestina. Desnorteado, parecendo não acreditar naquilo que acabara de ouvir, Mateus inqueriu novamente: “Mas, onde está a paciente? E por que, então, a senhora sentou na cadeira e veio calada até aqui?”

“Ué, você mandou eu sentar que a gente ia passear, eu fui. A Deodora estava no banheiro e, já que eu ia ficar esperando ela, resolvi aceitar sua oferta” Esclareceu, finalmente, Ernestina.

Os outros funcionários na sala demoraram a entender o imbróglio. Uns ficaram admirados do ocorrido, outros com toda força possível contiveram a gargalhada. Mateus, ainda processando mentalmente toda história, soltou os ombros e um longo suspiro.

Deu meia volta empurrando a cadeira, agora ladeira abaixo, fato que demanda também muita força e cuidado redobrado para segurar todo aquele peso que, segundo as leis da física, poderia acelerar rampas abaixo, atropelando Mateus e qualquer outro apóstolo que estivesse no caminho.

O auxiliar, retomado o raciocínio, só pensava que, além do esforço da descida, teria que refazer todo o caminho de volta ladeira acima. Por fim, falou para si mesmo em pensamento: O engano provoca sofrimento dobrado. Pegou sua cadeira e seguiu. 


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