Vez ou outra algum músico, empolgado com sua criação artística, me traz umas folhas de papel dizendo: “Maestro! Olha essa música que compus!”. É difícil disfarçar a decepção ao olhar para a “música” composta e ver que a “obra musical” não passa de um poema solto numa página de caderno. Um poema? Como? Quando foi que um poema isolado virou música? Como parabenizá-lo se toda a música ainda é um mistério em sua cabeça? O que o leva a acreditar que eu enxergaria sua música através apenas do texto no papel?
Incontáveis compositores ao longo da história se valeram do poema para suas criações musicais e realizaram obras belíssimas, seja sobre textos de própria autoria, extraídos da Bíblia ou criados por algum libretista. O trabalho de musicar um texto é uma das mais antigas formas criação musical, chamada popularmente de canção. A canção assumiu vários formatos e papéis na sociedade durante os tempos, desde canções sacras, folclóricas, até canções de cunho ideológico. Independentemente de seu propósito, seja a chanson francesa, o lied alemão, a canzone italiana, a característica comum entre elas é a melodia acompanhada na qual um texto é cantado. Porém, o texto em si e apenas ele não constitui uma música. O indivíduo que cria um texto poético e procura fazer uma canção com aquele material o faz porque possui afeto pela letra e o quer expressar. É evidente a importância da palavra, mas a balança não anda equilibrada. Sempre que se busca por canções de Bach, Mozart, Schubert, Mahler ou compositores brasileiros como Villa-Lobos, Osvaldo Lacerda, Ernani Aguiar, Camargo Guarnieri entre tantos outros, encontram-se partituras completas. Isso porque na obra desses compositores música e texto são indissociáveis, letra e música se completam.
Individualmente possuem sua beleza, mas foram concebidas para atuarem juntas. Uma arte só. É assim que deve ser. Já que tão rotineiramente pessoas me apresentam apenas o texto como “música”, já que tantos artistas veiculam apenas a letra como conteúdo musical, concluo que algo se perdeu
pelo caminho. A escrita musical se perdeu? Foi só isso? A forma recorrente com que essa situação ocorre é preocupante não apenas pela notável falta de instrução musical por parte do “compositor”, mas pela clara desigualdade na formação do indivíduo artista, que, sabido da língua portuguesa, se presta a fazer música, justamente o que menos sabe, ou sabe, mas, seguindo uma “tendência moderna”, trata a música de maneira diminuta, secundária, como um mero elemento harmonizante, um “bater” de acordes no violão, o mínimo necessário para entoá-lo da sua “verdadeira obra artística”, o “belíssimo texto a ser musicado”, estabelecendo-se assim, uma lamentável relação que beira o parasitismo, à medida que se utiliza da música para sobressair o texto, mantendo-a subnutrida, reduzindo-a à condição de mero acompanhamento. Em contraponto a essa hegemonia do texto sobre a música, certo pensador anônimo da renascença descreveu muito belamente de forma irônica essa relação: “Música e poesia se relacionam de maneira magnífica! A música confere sentimento e profundidade à significação do texto poético, já o texto, por sua vez, oferece uma contribuição redundante.”
Evidente que se trata de um posicionamento partidário a favor da música, menosprezando a contribuição do texto no resultado artístico final. Segundo esse pensador, o texto poético numa canção apenas verbaliza o sentimento já transmitido pela música, o poema diz o que a música já vinha transmitindo, diz o que já foi dito. Questionável, mas pertinente. A música é um poderosíssimo transmissor de afetos. Sendo extremamente abstrata em sua concepção, a mesma consegue ser singularmente objetiva, transmitindo ira, paz, humor, respeito, amor, ódio, solenidade, ímpeto, bravura e tantos outros estados de espírito. Logo, sabendo construir musicalmente o ambiente afetivo desejado, o texto poético não terá uma participação redundante como o pensador renascentista afirma, mas terá o ambiente mais propício de todos!
Uma vez que a música amolecer os corações, o poema tratando de amor encontrará o mais fértil dos terrenos. Mas, se a temática de amor for contraposta por um ambiente musical forte, rígido, pesado, o mesmo texto poético soará possessivo e perturbador. Sendo assim, entende-se que o texto diz, mas é a música que oferece o contexto afetivo, podendo aprofundar o significado ou gerar significações secundárias, como ambiguidade, malícia e mentira. A verdade é que a música oferece com louvor tudo aquilo que sempre faltou ao texto. A prova disso é que ninguém se satisfaz com o poema no papel, ele precisa ser declamado!
A declamação também não satisfaz e a evolução desse processo de refinamento culmina numa inevitável obra musical. Olhando historicamente, o pensador renascentista não gerou essa frase sem base, o ambiente musical naquele contexto era outro. Numa sociedade sacudida pelas grandes navegações que, superando o medo, lançavam homens ao desconhecido em busca do novo, as artes então pegaram carona nesse barco. A música renascentista era especulativa e inventiva como poucas vezes foi permitida ser. Evoluiu radicalmente e a complexidade das obras vocais e corais avançaram muito além de seu tempo. A mesma tornou-se objeto de estudo científico. Nesse momento, em oposição aos tempos modernos, a música era a finalidade, o objeto do trabalho, o poema era menos relevante, apenas pretexto, objeto de articulação para o canto, havia menor interesse na mensagem textual. O pensador citado não filosofou, apenas documentou o que se observava na música de seu tempo. Posteriormente a isso, as cantatas, oratórios e principalmente os lieder, óperas, musicais e coros cênicos fundiram exemplarmente música e poesia, extraindo o máximo das duas partes. Mas as perguntas ainda não foram respondidas. Em que momento a parte musical perdeu seu refinamento? Por que a canção deixou de se importar com a música? Quando o texto assumiu a primazia do interesse artístico e tornou-se critério para avaliação na qualidade musical? É só o texto? Ou a dança também tem crescido por meio da subtração da complexidade do material musical? Seria proposital? Como estão nossas escolas de música? Ensinam música ou conformam-se à moda do momento? Quem tem sido colocado como referencial de músico no Brasil? É impressão ou aspirantes a músicos que se apresentam em programas musicais de auditório são significativamente superiores às autoridades musicais que os julgam?
O melhor resultado no tratamento entre música e texto exige evidentemente uma boa instrução nas duas áreas ou, ao menos, a ciência por parte do artista de suas insuficiências particulares e sua constante busca pelo aprimoramento artístico
em ambas as vertentes. Existem muitas maneiras de musicar um texto para que ele venha a exprimir o afeto desejado. Não existe uma fórmula básica; mas para tal feito o indivíduo precisa ser músico. Não precisa conhecer séculos de história da construção de uma canção para reproduzir uma melodia acompanhada; mas alguns conhecimentos são necessários para que o indivíduo se autointitule compositor pelo simples fato de que existe um abismo de diferença entre um compositor e o reprodutor de algo que já é prática corriqueira na sociedade. Isso é uma discussão séria, a música tem se tornado boba.
O bobo se tornou rotineiro e tem se reproduzido como coelho. Para um iniciante, bastam poucas aulas de violão para que seja capaz de tocar a maior parte do repertório atual. Se poucas aulas bastam para tocar, bastam também para compor, proliferando então o processo de desmúsica. Bem, a música de fato já se esvaziou e hoje dificilmente passa de mera “batida” de violão, lutemos para que o texto também não se esvazie e nossas canções não se reduzam a “na na na”, “ou ou ou” ou narrativas de fracassos amorosos.
*SANDRO MUNIZ É MAESTRO DO MUNICÍPIO DE FERNANDÓPOLIS