ARTIGO

CARTA AO POVO DE DEUS

CARTA AO POVO DE DEUS

Por Dom Reginaldo Andrietta, Bispo Diocesano de Jales

Por Dom Reginaldo Andrietta, Bispo Diocesano de Jales

Publicada há 4 anos

Estimados irmãos, estimadas irmãs.

Paz e bem!

Envio-lhes a "CARTA AO POVO DE DEUS" assinada por mim e outros irmãos episcopado. Ao ser escrita no dia 22 de julho passado, nós a apresentamos ao Conselho Permanente da CNBB para considerações, não recebendo objeções. Por isso, a publicamos, agora, oficialmente. Solicito que a compreendam especialmente do ponto de vista do "diálogo nacional" que propomos para salvar vidas, socorrer os mais necessitados e construir, juntos, um Brasil mais justo e solidário. Assim o fazemos com espírito de comunhão em Cristo, de quem recebemos a missão apostólica. Convido-lhes, portanto, ao lerem, comentarem e divulgarem essa carta, a abrirem os corações e mentes para entenderem e acolherem o que o Espírito do Senhor nos sugere por meio dela, neste momento, como testemunhas do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. "Eu vos disse essas coisas para que, em mim, tenhais paz. No mundo tereis aflições. Mas, tende coragem! Eu venci o mundo" (Jo 16,33).

Fraterno abraço.

Festa de Santa Maria Madalena, “Apóstola dos Apóstolos”.

Povo de Deus,

a vós, graça e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo (Ef 1,2).

Eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância (Jo 10, 10).

1. Somos bispos da Igreja Católica, de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa

Francisco e seu magistério e em comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil,

que no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da

justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus, interpelados pela gravidade do momento

em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos

os que desejam ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.

2. Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar

é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a

proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor

não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns

indivíduos necessitados [...], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria

consciência. A proposta é o Reino de Deus [...] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180).

Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.

3. É neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não temos interesses

político-partidários, econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse

é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma

sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor.

4. O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma “tempestade

perfeita” que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação

de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão

que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da

República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.

5. Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à prova, exige de suas instituições,

líderes e organizações civis muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados. Somos

convocados a apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios,

em favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade

estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença.

6. É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário.

As escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente

aos desmandos do Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas

que se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se abatem também sobre a Casa Comum,

ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores,

latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os

da mãe terra. “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas

causadas à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia

por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).

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7. Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave

e desafiador. Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou

normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou

do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são

projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a

qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser

confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para

que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

8. Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade

do Governo Federal em enfrentar essas crises. As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como

para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda

mais a vida do povo. É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias, mas não como

as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis,

liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controle de desmatamentos e, por

isso, não favoreceram o bem comum e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no

neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da

grande maioria da população.

9. O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa

intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no

mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência

do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a

ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do

totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a

democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população; e o

recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma

massa de seguidores radicais.

10. O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo

é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na

escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da

educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de

processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência

crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas

com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número

de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde;

na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da

pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e

pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.

11. No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis

pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos,

concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra

pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal

descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação,

educação, moradia e geração de renda.

12. Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal

demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam:

as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos

cortiços e o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais atingidos

pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os

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levem a ter esperança de superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma

cruel. O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à

COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária,

dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos

hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos

territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta

Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).

13. Até a religião é utilizada para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio,

criar tensões entre igrejas e seus líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre

religião e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos

fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário. Como não ficarmos indignados diante do

uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que

incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino

de Deus e sua justiça?

14. O momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por isso, propomos um amplo diálogo nacional

que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e

mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado

Democrático de Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos

públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com “terra,

teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de qualidade

para todos. Estamos comprometidos com o recente “Pacto pela vida e pelo Brasil”, da CNBB e

entidades da sociedade civil brasileira, e em sintonia com o Papa Francisco, que convoca a

humanidade para pensar um novo “Pacto Educativo Global” e a nova “Economia de Francisco e

Clara”, bem como, unimo-nos aos movimentos eclesiais e populares que buscam novas e urgentes

alternativas para o Brasil.

15. Neste tempo da pandemia que nos obriga ao distanciamento social e nos ensina um “novo normal”,

estamos redescobrindo nossas casas e famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do

encontro com Deus e com os irmãos e irmãs. É sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do

Evangelho que nos faz compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos, para

divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi, 12/4/20).

16. Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade

de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que

“a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da

luz” (Rm 13,12).

O Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face e se compadeça de vós.

O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm 6,24-26).



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