ARTIGO

Criança esperança - de lucro - sempre

Criança esperança - de lucro - sempre

Por Sérgio Piva

Por Sérgio Piva

Publicada há 4 anos

Na véspera do feriado do dia 12 de outubro, tive uma ideia genial. Fui a uma loja de brinquedos para comprar presentes do Dia da Criança. Pena que os outros noventa por cento da população mundial também tiveram a mesma ideia genial. Dos dez por cento que não estavam lá, cinco por cento eram inteligentes e os outros cinco precavidos. 

Depois de alguns minutos dentro da loja, observando todo aquele fuzuê, me senti o verdadeiro Simão Bacamarte do Machado de Assis. Só faltou a loja toda amarela ser pintada de verde. Foi logo nesse instante, quando lembrei que o feriado também é Dia de Nossa Senhora, que pensei em chamar por ela. 

Como não quis incomodá-la, ainda mais no aniversário dela, decidi num está-lo, antes de trancar-me na Casa Verde (nesse caso amarela), sair dali correndo, arrastando minha esposa pelo braço. 

Na verdade, a maior loucura é nos deixarmos levar pelas propagandas midiáticas patrocinadas pela indústria e comércio, nos fazendo acreditar que as datas criadas por eles são de extrema importância e devem ser celebradas com um presente que, supostamente, marcará tais ocasiões como ícone de lembrança e recordação.

De fato, haverá lembrança, durante o prazo de vencimento sucessivo das faturas do cartão de crédito, estendendo-se até o momento de sua quitação ou, quem sabe,  até a próxima data comemorativa marcada no calendário e gravada em todas as telinhas de TVs e celulares, outdoors, panfletos e subconscientes coletivos. 

No entanto, a criatividade fazendária e a agiotagem celebrativa não se encerram nas coxias e nos palcos da fabricação e venda de produtos, sobretudo daqueles destinados ao público infantil, estão também sendo cada vez mais imaginados nas empresas de prestação de serviços. 

Produzir e vender produtos para as crianças (leia-se para os pais e parentes afins) é certeza de lucro polpudo, especialmente na era da submissão paterna e tirania pueril. Tempo em que a palavra “não!” foi extinta do vocabulário maduro-responsável, dando lugar ao “tudo pode”, permitindo às crianças recitarem diariamente o versículo do estatuto público “Todo posso daquele que me obedece”. 

De olho na máquina infante de fazer dinheiro, inspiradas na engenhosidade fabril-mercante, as empresas de serviços também resolveram inventar novas comemorações a fim de disponibilizar outros eventos e outras formas de vender para nós, os animais irrefletidos.

Não bastasse o dia-de-tudo-quanto-é-coisa para que compremos qualquer-que-seja-a-coisa, criaram festas onde os convidados precisam comprar mais coisas para presentear e os anfitriões necessitam contratar mais serviços. 

Permanecendo somente no reino da criançada, depois dos tradicionais aniversários, criaram os chamados “chás de bebê”, ou chá de baby para os mais frescos e americanizados, permitindo o lucro com a criança que nem nasceu ainda, sequer viu o mundo, quanto mais o capitalista. 

Como o mercado é vasto, a imaginação é fértil e sempre há alguém disposto a comemorar, angariar, gastar, esbanjar ou se mostrar, inventaram também o “Chá de Revelação”. Evento especialmente montado, com tudo a que se tem direito e dinheiro para gastar, tendo por finalidade “festejar” a data em que se pretende revelar o sexo do bebê.

Achei extremamente criativo e fantástico (para os fornecedores) que seja oferecida uma ocasião especial para revelar um segredo absolutamente sigiloso, que, para tanto, imagino haver um manual de instruções de como guardá-lo a sete chaves até a data pretendida. Claro, acompanhado de um modelo de termo de confidencialidade e sigilo a ser assinado pelo médico e demais profissionais envolvidos nos procedimentos dos exames de ultrassom. 

Inspirado neste prodígio inventivo e na quase recente teoria de que “os seres humanos nascem ‘iguais’, sendo a definição do ‘masculino’ e do ‘feminino’ um produto histórico-cultural desenvolvido tacitamente pela sociedade”, pensei em criar o “Chá de Gênero”. Momento em que o ser já nascido e vivido revelaria aos seus pais, demais familiares e amigos qual gênero escolheu para si, dentre os inúmeros já existentes, além daqueles a serem ainda criados. 

Minhas ideias não param aqui. Antes mesmo dos Chás de Gênero, Bebê e Revelação, poderiam ser criados também o “Chá da Gestação” para abrir o exame do laboratório certificando a gravidez ou, quem sabe, para ver a cor do teste da farmácia, que poderia pautar os tons da decoração e o formato dos docinhos servidos na ocasião, ou ainda o “Chá da Concepção”, que imagino desnecessária a descrição, deixando por conta de sua imaginação, inclusive, o formato das guloseimas. 

Já ia me esquecendo de que inventaram o “mesversário”. Afinal, esperar um ano inteiro para fazer uma festa é muito tempo. Por isso, proponho além disso a criação do “Septiversário” e do “Diariamentiversário”. Com relação à implantação do “horaversário”, deixaremos para discutir em outra oportunidade.

Para finalizar, pensei também em criar uma comemoração universal, em que não haja qualquer tipo de discriminação de classes, gênero ou etnia, o “Foolday”. Baseado na americanização vocabular brasileira, a data seria a ocasião perfeita para todos trocarem presentes e congratularem-se pela parca capacidade de atinamento e por nossa adestrada e resignada vida de gado.

A próxima comemoração do calendário comercial é o “Halloween”. Imbecilmente traduzida como “Dia das Bruxas”, dando margem a teorias mais imbecis ainda, a data introduz em nossa cultura, sem direito a qualquer tese de defesa que faça referência ao Código Penal, especialmente a seus artigos 213 e 214, mais uma celebração de origem “anglo-americana-saxônica”.  

Nessa mesma data, no calendário brasileiro, é o “Dia do Saci”. Mas a comemoração não pegou. Com certeza os setores industrial e comercial não a quiseram. Afinal, eles têm razão, não haveria muita possibilidade de lucro nesse intento. O material a ser comercializado seria um gorro e um shortinho vermelhos basiquíssimos e apenas, pasmem, um pé de sapato. Imagine só se apenas esses poucos produtos iriam dar lucro suficientes. 

Se o Dia do Saci fosse a comemoração oficial em nosso país, o comércio ia ter que dar seus pulos para criar novas versões do vestuário da lenda para sobreviver. O que não faz sentido, já que o papel de dar os pulos para disputar nosso exemplar, ser acotovelado na multidão, enfrentar filas e, no final, pagar a fatura, fica por nossa conta.   



Sérgio Piva

s.piva@hotmail.com



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