LITERATURA
Os peculiares livros fotográficos de Ramson Riggs
Os peculiares livros fotográficos de Ramson Riggs
Fotografias paranormais, crianças desajustadas, fantasia urbana, uma atmosfera de melancolia e tudo o mais que Tim Burton queria ler em um livro
Fotografias paranormais, crianças desajustadas, fantasia urbana, uma atmosfera de melancolia e tudo o mais que Tim Burton queria ler em um livro
"Com um mundo construído a partir de fotos supostamente reais de cenas sobrenaturais antigas, já podemos imaginar com que tipo de história vamos nos deparar"
Por Bruno Anselmi Matangrano
No dia 29 de setembro,estreou nos cinemas de todo o país o mais novo filme do mestre Tim Burton, O Lar das Crianças Peculiares, adaptação do primeiro volume da trilogia do jovem romancista americano Ransom Riggs, chamado O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares. Lançado no Brasil em 2012, pela editora Le Ya, o livro de Riggs trazia na quarta capa uma citação de Tim Burton dizendo: “Vocês têm certeza de que não fui eu quem escreveu esse livro? Parece algo que eu teria feito...” E quem lê o livro não tem dúvida nenhuma disso, pois logo pela capa (e pelas fotografias internas) vemos algo de perturbador, ao mesmo tempo engraçado e melancólico: a cara do cineasta. É um livro muito bonito, mas não de uma beleza comum. Com o perdão do trocadilho, trata-se de um livro peculiar, digamos assim, desde a capa propositadamente envelhecida até as ilustrações internas, na verdade fotografias reais antigas, retratando supostas atividades paranormais a partir das quais a trama se desenvolve. Na verdade, Riggs já explicou em diversas oportunidades que primeiro vieram as fotografias, que colecionava. Com elas em mente, decidiu criar uma história, usando cada uma delas para desenvolver um personagem ou uma cena. Assim nasceu O Orfanato da Srta.Peregrine. Já os volumes seguintes, Cidade dos Etéreos e Biblioteca das Almas, lançados ambos este ano pela Intrínseca, no Brasil,foram compostos de maneira diferente: já tendo uma história em andamento, Riggs começou a “caçar” fotografias que se encaixassem nas cenas que queria escrever,embora, por vezes, tenha mudado completamente a história só para poder usar suas fotografias preferidas, como confessa na entrevista publicada ao fim do segundo volume da série.
Por ter construído seu mundo a partir de fotos supostamente reais de cenas sobrenaturais antigas, já podemos imaginar com que tipo de história vamos nos deparar. Em linhas gerais, a série narra as desventuras de Jacob Portman pelo mundo peculiar,isto é, o lugar onde habitam criaturas com poderes sobrenaturais, escondidas dos olhos dos “comuns”. Jake, que aparentemente é apenas mais um garoto americano normal de classe alta, é jogado, meio que por acaso (mas nem tanto) neste mundo, e acaba por descobrir, ao fim, ter, de certa forma, sempre feito parte dele.
Dito assim, pode parecer que estou falando de Harry Potter, ou de qualquer outra série posterior de fantasia, em que o herói órfão descobre fazer parte de um mundo mágico, muito mais interessante do que a realidade ordinária em que vivia. Porém,nos livros de Riggs, as coisas não são tão simples assim (e aí é que está toda a graça e originalidade do livro), pois Jacob não é órfão e tem uma boa e pacata vidana Flórida. Seus pais são legais e bem de vida, o que lhes possibilita conforto e facilidades. Então sair de seu mundo não é algo tão simples como é para os heróis mais convencionais. Jacob está sempre dividido; há momentos, inclusive, em que só queria ter uma vida normal.A complexidade psicológica da trama, aliás, se torna um ponto forte da obra.
Logo no prólogo, o livro mexe coma gente. O começo lembra, de certa forma, Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas (outro filme de Tim Burton), com uma atmosfera que em dada medida também evoca o filme Onde Vivem os Monstros? Mas isso é só no prólogo mesmo, como uma provocação ao leitor, que já começa o capítulo 1 desarmado e confuso, sem saber direito “qual é a desse livro”. O autor nos apresenta então a relação de fã e herói entre um menino e seu avô. O Sr. Portman (o avô) nada mais é do que um contador de histórias, que sobreviveu a muitas desventuras, tendo fugido da Polônia ocupada pelos nazistas,antes de se fixar nos Estados Unidos.Algumas de suas histórias são reais, outras não parecem ser tanto assim. Mas mesmoas que são fielmente históricas não são, porisso, menos fantásticas.
Sem saber quais são de verdade ou se nenhuma é de fato, Jacob ouve as histórias de seu avô,ora acreditando,ora duvidando,torcendo para que sejam verdadeiras, embora nenhum dos outros familiares lhes dê credibilidade.Como em Peixe Grande, as histórias do Sr.Portman parecem reais, mas talvez sejam exageradas demais, seja porque quem as conta é um neurótico de guerra,seja porque quem as ouve é um menininho que idolatra seu avô. E a explicação, a princípio, é exatamente essa. Não bastasse ser um neurótico de guerra com transtorno pós-traumático, o Sr. Abraham Portman é um exilado. Polonês e judeu, foi mandado embora de sua pátria por seus pais que tentavam salvá-lo da Segunda Guerra. E depois disso, antes de chegar aos EUA, o jovem Abe (como era conhecido) passa uma misteriosa estada em um orfanato numa ilha do país de Gales, o que acabaria mudando toda a sua vida. E suas narrativas.
Afinal, avôs e avós são sempre contadores de histórias. E quando essas histórias envolvem guerra, normalmente, são histórias de terror; é assim que parecem as histórias do Sr.Portman num primeiromomento. Histórias horríveis, mas assustadoramente reais. Mas tudo muda quando Abraham é assassinado diante de Jacob. Assim começa de fato o primeiro livro.
Se num primeiro momento ficamos totalmente encantados com a história do avô e de seu neto, no momento seguinte, o leitor perde completamente o fôlego ao sentir esse avô incrível ser tirado de nós, leitores,que compartilhamos sua imensa dor. A nostalgia e a melancolia ficam à flor da pele. O livro desperta certa tristeza ao mesmo tempo que um sentimento de solidariedade em relação a Jacob, tornando a leitura ainda mais intensa. Afinal, somos todos netos de contadores de histórias e certamente o momento mais fantástico, em seus dois sentidos, da vida de cada um de nós são as histórias de nossos avós (ao menos daqueles que tiveram a sorte de conhecê-los).
A partir desse trágico acontecimento, a vida de Jake muda completamente; ele passa a ser assombrado por pesadelos terríveis.Sua vida,antes perfeita, fica em frangalhos, e a única pessoa com quem conversa de fato é seu terapeuta, que termina por aconselhá-lo a buscar uma resposta para seus temores nas próprias lembranças e histórias de seu avô. É por isso que Jacob e seu pai viajam para a Europa, onde o menino entra em contato com o mundo peculiar, naquela mesma ilha, em Gales.
Para não dar muitos detalhes do que é esse mundo, contarei apenas que os peculiares são pessoas (em sua maioria crianças) que possuem poderes mágicos:alguns são invisíveis, outros podem voar ou controlar o fogo, há os incrivelmente fortes, e aqueles que podem comandar outras espécies de plantas ou animais. E há ainda mulheres muito especiais que se transformam em pássaros e controlam o tempo, criando fendas temporais onde todos estes desajustados vivem há séculos. Sim, de certa forma, parece que estou falando de X-Men. E às vezes parece um pouco mesmo. Ao mesmo tempo, é diferente. Riggs tem esse brilhante talento de fazer seu livro se parecer com outras histórias e ser completamente diferente de uma só vez. Em última instância, é visível que há inúmeras referências que constroem um mosaico bastante curioso.
Por fim, abrindo um parêntese, queria acrescentar que acaba de ser lançado um spin-off da série, uma coletânea chamada Contos Peculiares. Na verdade, este é um livro que faz parte da própria série, sendo lido e consultado por Jacob e seus amigos ao longo da trilogia. E agora, assim como osContos de Beedle, o Bardo, de J. K. Rowling,que também era um livro ficcional transformado em realidade, os Contos Peculiares também estão à disposição dos leitores. Acho que falar mais de qualquer um dos livros da série seria exagerar a quantidade aceitável de spoilers, mas vale adiantar que a história vai crescendo e envolvendo o leitor que se vê perdido e angustiado ao lado de Jacob e seus amigos. Nos dois livros que seguem o primeiro, a trama se torna mais intrincada, mostrando que cada mínimo detalhe da narrativa esteve, o tempo todo, habilmente amarrado. Para quem ainda não leu, fica então o convite para conhecer esse universo rico e interessante. E para quem já leu, vamos conferir o filme do Tim Burton, sobre o qual conversaremos no mês que vem, e comentaremos como o mestre releu essa aventura.