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NIETZSCHE VISITA

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‘Aquele que deveria ser o instrumento desvelador, a iluminação, transformou-se em artefato de proliferação de dogmas e fundamentalismos. Não existem mais os grandes sistemas filosóficos’

‘Aquele que deveria ser o instrumento desvelador, a iluminação, transformou-se em artefato de proliferação de dogmas e fundamentalismos. Não existem mais os grandes sistemas filosóficos’

Publicada há 8 anos


Se recordar, no aforismo que vocês insistem em chamar de “A morte de Deus”, apontei a “Crise da Razão”



Por Zé Renato


Numa noite dessas estava em minha biblioteca, na busca de um texto filosófico, e passei a relembrar os tempos de graduação, os estudos. Como sempre, me recordei de Nietzsche. Sua influência em minha vida, minha formação. Lembrava o quanto lhe sou grato. Peguei a obra Assim Falava Zaratustra. Em silêncio, passei a pensar. Por surpresa, senti uma bruma, ruídos, um tanto musicais, é verdade. Meio atônito, procurei me certificar da situação, do momento que passava. 


Para minha surpresa e estranhamento, estava diante de meus olhos o grande filósofo germânico. Olhei-o com um misto de surpresa, assombro e encantamento. Ele apenas me observava. 


— Wie geht’s?  — disse. 

—  Gut. Danke — respondeu Nietzsche. 

— Filósofo, por favor, é possível conversarmos na língua de Guimarães Rosa? — solicitei-lhe. 

— Sim. É um prazer. Aliás, gostaria imensamente de conviver com ele em vida. Grande escritor — afirmou o gênio. 

— Como diz meu amigo Ari, “Rosa é um esteta da palavra”. Se me permite, filósofo, percebo um forte paralelo entre ambos, nessa medida. Na textura da escrita de ambos constato o cuidado com as palavras, a leveza em enceta-lás, produzindo uma doçura, uma espécie de prosa poética.

 — Vim a conhecer desse lado a obra Grande Sertão: Veredas — respondeu o filósofo. 

— Sua tradução germânica manteve a força do original em português. Concordo, meu amigo. Permita-me chamá-lo assim — continuou. 

— Filósofo, uma honra dirigir-se a mim dessa maneira. 

— Depois de tantos anos estudando minhas obras, é o mínimo que posso fazer — comentou Nietzsche. 

— Espero, sinceramente, me postar à altura de tamanha deferência. De qualquer modo, como me conferiu a alegria e o carinho de visitar-me, posso realizar uma pequena entrevista para nosso suplemento cultural?

 — Será um prazer. 

— Comecemos. Em que estágio está a Filosofia? Ainda é possível “filosofar com um martelo”? 

— Meu amigo, constato que há uma crise por mim prenunciada.  Se recordar, no aforismo que vocês insistem em chamar de “A morte de Deus”, apontei a “Crise da Razão”. Aquele que deveria ser o instrumento desvelador, a iluminação, transformou-se em artefato de proliferação de dogmas e fundamentalismos. Não existem mais os grandes sistemas filosóficos. O último foi o Existencialismo de Sartre, que se encontra há algum tempo aqui conosco. Verifico que a Filosofia tem se limitado a abordar questões esparsas, aqui e acolá. Sinto muito: empobreceu. Quanto a sua segunda questão, acredito que sim. Ainda é pertinente, na medida em que aquilo que produzimos temos a convicção de que deva permanecer e proporcionar aos humanos novos instrumentos de reflexão. Muito embora esteja totalmente cético — ou melhor, continuo a sê-lo — quanto à capacidade de vocês aferirem e realizarem aquilo que lhes deixei. Preferem, no geral, entregar-se a práticas pseudo-hedonistas, de prazeres efêmeros, vazios e passageiros; entreter-se com ocupações que adestram, domesticam e não incitam à reflexão, ao pensamento, à coragem intelectual. 

— Filósofo, existe aqui alguém cujo pensamento e proposições filosóficas possam aproximar-se de sua Filosofia? 

— Meu amigo, não vejo isso há muito tempo! Lamento. 

— Você deixou algum “herdeiro filosófico”? 

— Sem arrogância, verifico que muitos filósofos produziram grandes trabalhos sob minha influência. Heidegger, Sartre, Foucault, Deleuze, Walter Kaufmann, por exemplo. No Brasil, minha maior influência está no trabalho do professor Oswaldo Giacóia Junior. 

— Fico feliz pela citação de Giacóia Junior. Foi meu professor na graduação e no mestrado. 

— Certamente você aprendeu um pouco sobre este que lhe fala. 

— Percebe sua obra influenciando algum artista? A pergunta faz sentido, uma vez que existe em seus escritos uma relação íntima com a Arte. 

— Felizmente sim! No cinema, meu maior influenciado é Clint Eastwood. O que torna sua obra mais nietzschiana é o fato de o cineasta não ter a menor ideia de que o é. Na música, ainda nos Estados Unidos, Charlie Parker, John Coltrane, Miles Davis são alguns nomes. No Brasil, Caetano Veloso e Jorge Mautner. Na literatura, verifico influências em Thomas Mann e Albert Camus, por exemplo. Na poesia, não tenho dúvida nenhuma, Fernando Pessoa. 

— Filósofo, crê ainda em seus conceitos de Apolíneo e Dionisíaco? 

— Talvez fossem necessários alguns ajustes, todavia, calculo, ainda são válidos. 

— Na música, permita-me, como está sua relação com o maestro Richard Wagner? 

— Meu amigo, os temas do além não podem ser divulgados no mundo dos vivos. Perdoe-me. Fico devendo essa resposta. 

— Sem problemas. Tudo certo. Não altera nossa amizade. Filósofo, você é agnóstico? Como foi sua relação com a religião? 

— Começo respondendo ao contrário. Sempre critiquei as religiões, no sentido de domesticarem os humanos por meio de dogmas. Pregar uma salvação da alma em detrimento do corpo. Transformando quereres em espera, aceitação, escravização de uma vida inautêntica — aprendi essa expressão com Heidegger e Sartre —, obrigando os humanos a cumprirem ordens de uma moral hipócrita e fracassada. Tornando-os fracos, culpados e doentes. Minhas críticas eram ao cristianismo, à instituição, e não ao Cristo. Ninguém compreendeu. Talvez poucos. Nesse sentido, não sou religioso. Quanto à primeira pergunta, nunca o fui. Minhas contestações são ao “Paulismo”, à religião, à deturpação de Deus. Não sou agnóstico. 

— Incomoda-o o fato de ter seu nome ligado à aberração do nazismo? — Afirmei: “Não sou homem, sou dinamite”. Minha Filosofia é provocativa. Suscita infinitas interpretações. Todavia, jamais admiti tamanha aberração. Elizabeth (irmã do filósofo) jamais poderia ser tão canalha, a ponto de distorcer minha obra inacabada que foi traduzida no Brasil por “Vontade de Potência”, com a pretensão expressa de obter êxitos pessoais e escusos. Sofri cinquenta anos, no tempo de vocês, com essa injúria. Aproveito para agradecer aos brilhantes italianos Colli e Montinari que executaram um trabalho maravilhoso e paciencioso, a fim de desfazer a calúnia. Aproveito para agradecer ao querido mestre Antonio Candido pela publicação de um texto no suplemento cultural do jornal O Estado de S. Paulo, em 1945, no qual afirmava: “Recuperemos Nietzsche!”.

 — Filósofo, sinto em encerrar essa conversa. Foi divino — permita-me a brincadeira — dialogarmos. Danke! 

— Foi um prazer dionisíaco, meu amigo. Danke! 

— Forte abraço. Bis eine andere Zeit. 

— Até outra hora. Grande abraço. 

— Filósofo, espero demorar a encontrá-lo pessoal ou metafisicamente. 

— Quem sabe? Nosso tempo é outro! Um ruído me fez acordar aos sobressaltos. Era gol do Corinthians. Havia adormecido. Fora um sonho? Suponho que sim. Todavia, não duvide do poder do inconsciente. Como cético, duvido. 

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