CINEMA

Debatendo 'O lar das crianças peculiares' de Tim Burton

Debatendo 'O lar das crianças peculiares' de Tim Burton

Como lidar com adaptações que fogem à história original: o livro deve ter primazia ou os roteiristas e diretores devem ser livres para criar? Eis a questão

Como lidar com adaptações que fogem à história original: o livro deve ter primazia ou os roteiristas e diretores devem ser livres para criar? Eis a questão

Publicada há 7 anos

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Por Bruno Anselmi Matangrano


Quando você gosta muito de um livro, é com expectativa e ansiedade que espera por sua adaptação cinematográfica ou televisiva. Torna-se sempre um momento tenso, pois, se por um lado, ver seu personagem favorito ganhar um rosto é uma sensação incrível, por outro, a possibilidade de ver a adaptação totalmente diferente do que você esperava (ou de como o livro se desenrolava) pode ser bastante frustrante. No entanto, o fato de a adaptação divergir da história original nem sempre é um problema, embora os fãs tenham dificuldade em lidar com isso... E falo por experiência própria.


No fim de setembro, estreou em todo o mundo o mais novo filme de Tim Burton, o aguardado O Lar das Crianças Peculiares, adaptação de O Orfanato da Srta. Peregrine para crianças peculiares, de Ransom Riggs. O livro conta as (des)venturas de Jacob Portman, um adolescente da Florida meio desajustado, após descobrir pertencer a um mundo povoado por crianças de poderes sobrenaturais e mulheres capazes de controlar o tempo. Como não poderia deixar de ser, o filme ficou visualmente muito bonito, com jogos de cores e luzes, entre o pastel e o saturado, tão caros a Burton e tão queridos pelos fãs do diretor.

A crítica recebeu o filme muito bem, de modo geral; o público, porém, se dividiu. Isso porque, se por um lado, o amante de filmes do gênero se depara com uma ótima história de fantasia urbana, cheia de referências, partindo de estereótipos e clichês para conseguir um ótimo e novo resultado; por outro, o leitor de Riggs que tanto esperou esta adaptação (sobretudo por ser encabeçada por um dos diretores mais icônicos da atualidade) se sentiu tremendamente frustrado (para não dizer traído), uma vez que, da metade em diante, o filme se distancia completamente dos livros de Riggs, encerrando-se com um final que nada lembra o do livro e que não dá margem para possíveis sequências, apesar de a história original ser uma trilogia.

Como leitor voraz dos livros de Riggs e burtoniano de carteirinha, fiquei extremamente dividido enquanto via o filme, maravilhado e revoltado ao mesmo tempo. Confesso que em um primeiro momento não soube lidar bem com as mudanças. Mas depois fiz o exercício de tentar me desligar do livro e encarar o filme como algo isolado e concluí que o resultado ficou ótimo em si mesmo.

Todavia, nem todo mundo foi tão compreensivo (ou misericordioso) com Burton, e críticas pulularam nas redes sociais e sites especializados, culpando seu suposto ego inflado pelas mudanças radicais na história (sobre as quais não falarei pontualmente para não dar spoilers. De nada!). O que essas críticas deixam de lado, porém, são os fatos de o roteiro não ser do Tim e de Jane Goldman, a roteirista, possuir um longo histórico de adaptações bem-sucedidas que se distanciam muito das obras originais. Para citar algumas, penso, sobretudo, nos três filmes dirigidos por Matthew Vaughn: Stardust – O Mistério da Estrela, baseado no livro homônimo de Neil Gaiman, Kingsman – Serviço Secreto e Kick Ass – Quebrando Tudo, adaptações de quadrinhos roteirizados por Mark Millar. Três filmes de que gosto muito, que fizeram bastante sucesso (sobretudo as adaptações dos quadrinhos de Millar) e que se distanciam bastante das histórias originais, mostrando que um bom filme não nasce necessariamente de uma adaptação fiel. É aí que gostaria de chegar.


O fato é que existem essencialmente quatro tipos básicos e óbvios de adaptações: 1) as que são bastante fiéis e que ficam ótimas; 2) as que são fiéis ao original, mas não funcionam na nova mídia; 2) as que se distanciam do livro, gerando ótimos filmes; e 4) as que justamente por divergirem da obra adaptada tornam-se péssimos filmes. Pensemos em alguns exemplos para cada um desses casos.

Creio ser unânime dizer que as adaptações de O Senhor dos Anéis resultaram em filmes bastante fiéis aos livros de J. R. R. Tolkien e, ao mesmo tempo, ótimas obras cinematográficas, agradando gregos e troianos (no caso, crítica especializada e fãs ferrenhos). Peter Jackson soube transpor com maestria a história de uma mídia para outra sem grandes perdas; feito que não conseguiu reproduzir na trilogia O Hobbit. Esta, a cada filme, distanciou-se mais da obra original até culminar em uma maçaroca decepcionante de péssima qualidade, que o próprio Jackson admitiu ter saído errado. Já os filmes da franquia Como Treinar Seu Dragão, vagamente inspirados pela série homônima de Cressida Cowell, mostram como é possível criar coisas novas a partir de algo existente (com um resultado que, aliás, em minha modesta opinião, supera em muito os livros). Isso porque houve uma mudança de público ao qual a obra se dirige: os livros de Cressida são extremamente infantis e engraçados, enquanto os filmes trazem uma profundidade maior, com questões delicadas, momentos tristes e emocionantes, no intuito de agradar não apenas crianças, mas igualmente adultos, dando margem para produtos derivados, como as sequências cinematográficas e a série televisiva. As adaptações da série As Crônicas de Nárnia seguem exatamente o mesmo caminho, tornando um pouco mais adultas as lindas fábulas de C. S. Lewis para ampliar o alcance dos filmes, o que também deu bastante certo, apesar das diferenças abissais entre filmes e livros.


Por outro lado, no filme O Código da Vinci, bastante fiel ao livro de Dan Brown, Ron Howard não consegue imprimir a mesma dinâmica da obra original. Enquanto o livro é ágil, o filme se estende arrastado, apesar de reproduzir tão fielmente o enredo.

Paro essa lista por aqui, pois exemplos não faltam. A verdade é que não há regras quanto ao que faz uma boa adaptação (e de certa forma é também questão de gosto). A fidelidade ou não à obra original não garante a qualidade da obra derivada e por isso cada caso merece uma atenção em particular. De toda forma, é interessante julgar a obra derivada sem preconceitos, para podermos julgá-la pelo que ela é, e não pelo que queríamos, enquanto fãs, que ela fosse.

Mas, para concluir, voltemos ao filme de Tim Burton.


Analisando O Lar das Crianças Peculiares simplesmente como filme e não como adaptação, o espectador se depara com uma excelente história de fantasia, que parece misturar, como eu disse em meu artigo anterior, os mutantes de X-Men com o mundo mágico de Harry Potter. A história está coerente em si mesma e o vilão (praticamente criado para o filme) é um grande acréscimo, possibilitando uma nova trama com começo, meio e fim, e desobrigando o cineasta de fazer sequências que certamente dependeriam do desempenho das bilheterias (além disso, é sabido, Burton detesta sequências).


O visual traz tudo o que seus fãs podem esperar: é um filme bonito, com cenário, figurino e efeitos belos e cuidadosos. A trilha sonora, que estranhamente não esteve a cargo de Danny Elfman como de praxe, completa com maestria a ambientação. Os atores fazem bonito, como também é de se esperar de estrelas gabaritadas como Eva Green, Jude Dench e Samuel L. Jackson, ou mesmo do protagonista Asa Butterfield, que apesar de bastante jovem já possui grande experiência. As crianças dão um show à parte, parecendo terem sido escolhidas não apenas pelo talento, mas também pelos grandes e belos olhos, quase como uma autorreferência de Burton a seu filme anterior. Aliás, autorreferências não faltam: para seus fãs mais atentos é possível encontrar ecos de quase toda sua filmografia, de Edward Mãos de Tesoura aos clipes da banda The Killers passando por Planeta dos Macacos e uma possível menção a Dumbo, previsto como próximo filme do diretor.


Para quem não viu, portanto, recomendo fortemente. Mas vá de mente aberta. É uma nova história, não a trama criada por Ransom Riggs (que por sinal é excelente também e vale a pena ser lida). Apesar de ser uma adaptação, O Lar das Crianças Peculiares é uma obra autoral, com cara e assinatura de Tim Burton. Mas não apenas dele. Afinal, é sempre bom lembrar, o roteiro é da incrível Jane Goldman, cujos filmes também têm identidade e estilo próprios e cuja assinatura é justamente criar roteiros novos a partir de histórias já aclamadas.


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Inconfundível. O cineasta Tim Burton



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BRUNO ANSELMI MATANGRANO, AUTOR DE ‘CONTOS PARA UMA NOITE FRIA’ (LLYR), É PESQUISADOR, EDITOR, TRADUTOR, ESCRITOR E DOUTORANDO PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

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