O novo coronavírus é um elemento invisível aos olhos humanos, porém, dispõe de um poder devastador ao funcionamento cardiorrespiratório. Tem a capacidade de transmissão altamente potencializada durante a interação das pessoas, geralmente por meio de gotículas humanas, e compartilhamento de objetos contaminados (PORCINO et al., 2020), “adensamento populacional urbano, massiva mobilidade de populações nestes espaços, agregação de grandes contingentes de pessoas pobres, que por seu turno acabariam por ocupar habitações precárias com acesso limitado ao saneamento básico” (LIMA; BUSS; PAES-SOU2SA, 2020, p. 2).
A transmissão “parece ocorrer principalmente pelo contato com uma pessoa infectada, através de gotículas respiratórias geradas quando a pessoa tosse, espirra, ou por gotículas de saliva ou secreção nasal. Ainda não se determinou o tempo de sobrevida deste novo coronavírus em ambientes e objetos e se existe transmissão por fômites” (CARVALHO et al., 2020, p. 3). O vírus se espalha rapidamente entre infectando as pessoas que, por sua vez, podem infectar outras pessoas próximas ou que estejam em convívio familiar, social e laboral. A pandemia, transformada em crise mundial de saúde, originou-se dessa capacidade de transmissão rápida e de difícil identificação do vírus, controle de expansão e exponencial capacidade de infecção.
Uma pandemia impacta a vida humana de diversas formas: causa uma crise geral e global, revela alto impacto nas convicções dos seres humanos, provoca mudanças nos valores culturais, emocionais, religiosos, sociopolíticos e econômicos e, principalmente, desperta nos indivíduos a sensação de impotência e autoquestionamento (LIMA; BUSS; PAES-SOUSA, 2020). Assim é que, em função da pandemia, tudo se transformou: relações sociais e profissionais (ou laborais, com home office), comportamentos, contatos, acessos a espaços públicos e privados, dentre outras. Todavia, apesar dessas transformações, em algumas áreas não houve mudanças mais sensíveis ou profundas, e muita coisa permaneceu inalterada, com zonas de conforto diante do novo desafio.
Esperava-se, durante e após a pandemia, que o ser humano emergisse com uma nova visão de mundo e de vida, pelos sofrimentos e limitações que ela causou. Criou-se uma ilusão amarga de remodelação individual e social, mas não parece que a retomada das atividades econômicas e de lazer tenha realizado ou solidificado esse ser humano que se imaginava. As pessoas estão, aos poucos, retomando suas vidas, porém, a “máscara”, imposta fisicamente, não impede que se desmascare ou se desvende a realidade: vivem-se os mesmos dramas diários individuais e, muitas vezes, se esquece das mazelas sociais e o drama coletivo. As dores, expostas com a propagação da doença, não se recuperaram de suas feridas nem evitaram o amargo do remédio para seu tratamento, sem que se tenha alterado a direção dos caminhos a percorrer pela frente. Parece não se enxergar longe, somente se busca sobreviver aos dias ou aos momentos, enquanto se vivencia a presença de “outras palavras e expressões [que] tomaram conta do dia a dia: pandemia, distanciamento, isolamento social, isolamento vertical [e horizontal com lockdown), cloroquina, ivermectina, imunidade de rebanho, testar positivo, testar negativo, intubado, extubado, novo normal... Tudo anormal!” (ALMEIDA, 2021, p. 11). Na prática, hábitos foram alterados rapidamente, diante da necessidade (ou imposição) das máscaras, álcool em gel, viseiras, escudos faciais e outros apetrechos que passaram a ser acessórios obrigatórios na proteção individual e coletiva, sem saber, com certeza, como se agir. Na verdade, assistiu-se à formulação de “ilusórias e esquizofrênicas futurologias – quase todas mediadas por um apocalipse sem igual” (ALMEIDA, 2021, p. 57), contra a insistência das tentativas de se viver um isolamento social sem perder a vivência de uma rotina em família e de trabalho normal.
Não se pode conceber a ideia de que a influência de um vírus tenha transformado o mundo em um caos, mas é importante salientar que comprometeu a saúde mental diante de um “novo normal” imposto pela pandemia. A preocupação com a saúde mental da população se intensifica durante uma grave crise social, e a “pandemia da Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) pode ser descrita como uma dessas crises, a qual tem se [sic] caracterizado como um dos maiores problemas de saúde pública internacional das últimas décadas, tendo atingido praticamente todo o planeta” (FARO et al., 2020, p. 2). Um evento dessa proporção acarreta perturbações psicológicas e sociais que afetam a capacidade de enfrentamento de toda a sociedade, em variados níveis de intensidade e propagação (BRASIL, 2021), e esforços emergenciais envolvendo diferentes áreas do conhecimento (dentre elas a Psicologia) são demandados para engendrar formas de lidar com o contexto da crise.
A “paranoia” do coronavírus não deixou de gerar e fomentar acometimentos mentais. Entre os sintomas ocasionados diante da nova situação individual e social, cognominado o “novo normal”, se apresentam: sintomas depressivos, ansiedade, estresse de moderado a grave, isolamento social e discriminação, fobias específicas, evitação, medos e incertezas, comportamento compulsivo, sintomas físicos e prejuízos no funcionamento social, além da possibilidade de incremento nos índices de violência doméstica derivados da convivência diuturna e nem sempre amistosa dos membros das famílias, recaindo os maiores impactos sobre as mulheres, idosos e infantes vulneráveis ao estresse e às agressões (FARO et al., 2021; BRASIL, 2021).
Durante a pandemia, os relacionamentos sociais foram reduzidos e alterados, com parco e difuso contato interpessoal diário e redução do número de pessoas nos relacionamentos. Assistiu-se à evolução do medo que justificava o comportamento de isolamento das pessoas que nem sempre conseguiam cumprir o isolamento social: tornou-se “difícil e desconfortável ficar sozinho consigo mesmo, tendo que lidar com inúmeros desafios e encarar os próprios conteúdos, os medos e monstros” que se avolumavam cotidianamente e geravam uma carga emocional intensa (COLOMBY; SALVAGNI; CHERON, 2020, p. 145). Afinal, enfrentar uma pandemia não se restringe a determinadas pessoas nem depende tão somente de adaptação no estilo de vida: requer uma adaptação subjetiva de como olhar a existência no mundo (LELES, 2020).
Instalada a ilusão do novo normal, FARO et al. (2021, p. 8) comentam que o “terceiro momento da crise pode ser compreendido como uma fase de reconstrução social. Após o declínio do número de novos casos e a diminuição da transmissão comunitária, as medidas de distanciamento social são reduzidas e o surto de contaminação tende a estar sob controle, ainda que não seja necessariamente inexistente”. Nessa situação, os indivíduos começam a retomar as atividades habituais, com retorno gradual do funcionamento das instituições, do comércio e ambientes laborais, permeadas por menor nível de exigência de proteção contra o contágio e com redução dos casos de transmissão comunitária, internações e mortes. Embora se assista a uma progressiva retomada da rotina diária em curto prazo, um conjunto de consequências da pandemia requer prazos delongados (médio e longo) para se ter a normalidade habitual. Todavia, quando se pensa em um novo tempo em saúde, pensa-se em “colocar em prática novos comportamentos em resposta ante as urgências sociais e éticas manifestadas” nos tempos de pandemia na sociedade. O “novo começa por renovar o ser humano como sujeito de relações, um sujeito ‘não pronto’, mas em constante transformação. Assim, é possível vislumbrar um ‘Novo Normal: saudável e humanizado’” (SOUZA; SALGADO; FRETTO, 2020, p. 93).
SCHIRATO (2020) entende o novo normal como a proposta de um novo padrão que possa garantir a sobrevivência do ser humano, ou seja, é importante perceber que há “luzes no horizonte de um ‘novo normal’ em saúde, uma transposição de um antes para um depois: a ‘saúde saudável’, pensada através da relação integrada e humanizada de todas as dimensões que constituem a estrutura do ser humano”. Certamente, “vamos ter que andar com máscara, mais contidos, menos expansivos, como se estivéssemos no frio [...] que apostar em um novo modelo de vida” (SOUZA; SALGADO; FRETTO, 2020, p. 110).
Para Veronese, Machado e Pozzoli (2020, p. 5), vive-se um período de excepcionalidade com o advento da pandemia da Covid-19, que fez emergirem velhas questões dormentes que, agora, ganham contornos novos e remodelam outras tantas: tem-se a impressão de que o estado de bem-estar foi abalado, quando não rescindido, em contraponto à ilusão de um novo normal positivo. São visíveis a “ausência do pleno emprego, as perdas na renda real, o desemprego, o colapso das empresas e a pobreza crescente, para citar alguns exemplos”, revivendo questões já anteriores à pandemia. Assim, a consciência da responsabilidade torna-se um signo da “assunção do ser”, isto é, o compromisso real para atuar com fraternidade e qualidade de seres humanos fraternos. Certamente se vivencia um “novo normal”, uma transformação com uma nova dimensão e sentido na compreensão do normal: uma vida conjugada com a essência humana, a raiz fraterna das relações humanas.
Há desafios impostos desde às mais singelas atividades do cotidiano às novas configurações das relações individuais e coletivas, os quais ainda perduram (SOUZA; SALGADO; FRETTO, 2020; VERONESE; MACHADO; POZZOLI, 2020; SCHIRATO, 2020): a permanência na casa, isolamento ou distanciamento social, acesso restrito às atividades de lazer, sensação de confinamento provocado pelo isolamento, necessidade de divisão dos espaços e das tarefas nas esferas públicas e privadas com efeitos nocivos às condições de saúde física e mental ainda não totalmente mensurados, e qualidade de vida das pessoas. Não se trata de amargar a ilusão de um novo normal, como se demandasse uma transformação radical no estilo de vida, nos comportamentos e relações sociais e familiares, mas de um normal novo, nascido de uma crise generalizada, impulsionando a reconstrução e valorização das dimensões do ser humano nas esferas social, física, mental e espiritual. Neste sentido, lembra-se a oportunidade de se configurarem uma nova Humanização, Integração e Responsabilidade, como elementos essenciais para a “saúde saudável” e relações humanas gratificantes no “novo normal”.
Outrossim, é preciso mobilizar, em todos as esferas (global, regional e nacional), os meios para conter o agravamento das desigualdades socioeconômicas e de saúde, bem como a contração econômica, que empurra as populações para a pobreza (CEPAL, 2020). Tem-se que a implementação de políticas econômicas e a alocação de recursos essenciais para o enfrentamento deste choque (tais como saúde, ciência e tecnologia, educação e proteção social) visam aumentar a proteção do país aos choques futuros. A recuperação da empregabilidade torna-se prioridade para mitigar os efeitos perversos da alteração dos padrões de produção, bem assim a ativação e priorização de complexos médicos da saúde, adequados, desenhados e implantados de modo a que ofereçam resposta aos problemas sanitários prejudiciais à população e a outras epidemias que possivelmente hão de vir. Igualmente, além do pensar coletivo, que não se descure da dimensão individual permeada de afetos em que a vida se realiza, mesmo diante de adversidades e vicissitudes que influenciam a passagem e a superação da transição ao normal sem rótulos, mas existencial.
Psicólogo André Marcelo Lima Pereira
Email: andremarcelopsicologo@hotmail.com
REFERÊNCIAS
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CARVALHO, A. P.; PIMENTEL, A. M.; BEREZIN, E.; COSER, E.; ROCHA, M. Â. W; MARQUES, S. R. Novo coronavírus (COVID-19). Sociedade Brasileira de Pediatria, n. 14, fev. 2020. Documento Científico, Departamento Cientifico de Infectologia, p. 1-12, 14 fev. 2020.
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