Para uma boa convivência cotidiana com outros seres humanos, o indivíduo necessita de aceitação social, entendida como acolhimento pelo outro tal qual ele se apresenta, com seus defeitos e imperfeições, excentricidades, qualidades, sem tentativas de modificá-lo para a satisfação das expectativas, exigência, capricho ou qualquer conveniência alheia. É natural que cada pessoa possua características e aptidões únicas, mesmo entre irmãos criados em uma mesma família, compartilhando o mesmo espaço e o mesmo ambiente familiar. Se cada um tem as próprias habilidades, comportamentos específicos, anseios diferentes e expectativas singulares na mesma família, é muito maior a possibilidade de existirem diferenças e divergências de comportamento entre pessoas criadas e vivendo em lares diversos, expondo-se a experiências e padrões de aprendizagem e de vida diferentes.
Nestas condições, quando é aceito, o indivíduo tende a expressar-se de modo mais autêntico, por meio de palavras e atitudes honestas, proporcionando-se o desenvolvimento de potencialidades e a evolução de sua identidade. Cerqueira, Denega e Padovani (2020) alegam que as identidades dos indivíduos são construídas ao longo da vida e, em decorrência, eles se permitem ressignificá-las segundo suas vontades ou desejos, crenças, aspirações, apontando para determinados comportamentos, inclusive sexuais ou tendências de gênero.
Verifica-se, no entanto, que alguns buscam aceitação esquecendo o melhor de si no passado na tentativa de atenderem às expectativas alheias, mesmo que, para isso, reprimam sentimentos, pensamentos e comportamentos, ou ocultem, por vergonha ou hipocrisia, desejos lídimos e experiências vividas. Tal comportamento, no entanto, pode levar o indivíduo a eventuais desajustes emocionais, pessoais e sociais, promovendo o adoecimento psíquico. Nessa situação, ele abre mão de si mesmo, agride-se, deixa de viver suas peculiaridades em troca da aceitação pelo outro. Macedo e Andrade (2012) admitem, em contrapartida, que é de fundamental importância o indivíduo operar iniciativas para promoção do autoconhecimento e da autoaceitação, sem abrir mão de si próprio. Deve ter em vista, porém, a necessidade de ações e decisões coerentes com o que sente e conhece acerca de si, mesmo que esse comportamento demande esforço e dedicação para o alcance de melhorias na imagem de si próprio, permitindo-se caminhos para a adequação pessoal à vida, às intempéries, às vicissitudes e um viver consciente e saudável.
Uma criança em idade escolar, por exemplo, ao entrar em contato com seus pares, cria contextos relacionais “promotores do desenvolvimento e aprendizagem de múltiplas capacidades sociais, emocionais e cognitivas, determinantes do ajustamento social” (ALVES; CRUZ, 2010, p. 114), com reflexos psicológicos na adolescência e na idade adulta. Sua aceitação no grupo se define em função das preferências e rejeições que recebe de seus colegas. A aceitação ou rejeição passam a ser indicadores do funcionamento social da criança e, por extensão, de todo ser humano: quanto maior a aceitação, melhor o ajustamento social e a competência emocional. Machado et al. (2008) destacam três componentes da competência emocional: o conhecimento das emoções, que inclui o reconhecimento das próprias emoções e a diferenciação das emoções dos outros; a regulação das emoções ou modulação da intensidade e duração dos estados emocionais; e a expressão emocional diante de situações sociais. Dentro desse espectro, Alves e Cruz (2010) enfatizam que a conotação emocional é característica fundamental nas interações sociais e, em decorrência, marca fortemente a aceitação social de um indivíduo desde a infância.
Essas interações sociais se acham, também, fortemente atreladas ao comportamento acerca das relações de gênero. Villela, Monteiro e Vargas (2009, p. 3) expõem que o gênero é culturalmente construído, quando se atribuem “valores e sentidos diversos à constituição anatômica e à participação de mulheres e homens na reprodução biológica”. Portanto, o conceito de gênero socialmente construído difere do que se entende por sexo biológico, contrariando o pensamento que identifica gênero como equivalente a sexo biológico.
Assim, a vivência de um gênero (conceito sociocultural) pode ser discordante do que se espera de determinado sexo biológico: trata-se de uma identidade que se se aplica, por exemplo, a travestis e transexuais (cisgênero ou transgênero, ou simplesmente trans), pessoas que não se identificam com o gênero que lhes conferiu o sexo biológico. Segundo Silva et al. (2017), essas pessoas vivenciam papéis do gênero feminino, não se reconhecem como homens ou como mulheres, mas como se fossem membros de um terceiro gênero ou de um não gênero. Para estes autores, a população transgênero é, histórica e socialmente, estigmatizada, marginalizada por não se enquadrar na vivência de seu próprio sexo biológico e desviar-se dos padrões sociais estabelecidos. Essa é a razão por que se assiste à ocorrência constante de todo tipo de violências (físicas, psicológicas, simbólicas) contra essa população, excluindo-a do convívio social saudável e imputando-lhe a estigmatização
Chagas e Nascimento (2017), em seus estudos sobre a invisibilidade de indivíduos trans (travestis e transexuais), constataram que, além de não serem plenamente aceitos socialmente, suas existências são marcadas pela violência e violação cotidiana de direitos fundamentais, incluindo o de existir na sociedade de acordo com o gênero com que se identificam. Os autores destacam, todavia, o que pontuou Simone de Beauvoir (1970) em “não se nasce mulher, torna-se mulher” (1949), chamando a atenção para as construções sociais possíveis a respeito do que é ser homem e ser mulher – o que demanda um novo entendimento de gênero e a aceitação da pessoa tal como se manifesta. Nesta acepção, a modernidade deve abrir-se para a compreensão de que a mulher e, em corolário, o homem, não nasce com uma essência definida, que será modelada a partir de sua educação e de suas escolhas ao longo da vida, embora tal percepção não seja habitualmente aceita pela sociedade e gere controvérsias.
Comungando essa compreensão social de gênero, Jager et al. (2017, p. 38) insistem em que “compreender a personalidade de um sujeito refere-se a compreender os padrões de comportamentos, pensamento, sentimentos e atitudes típicas e constantes que caracterizam a sua forma de ser e viver o mundo e, portanto, particular”, ou seja, caminhar para uma aceitação real das diferenças singulares. Ressalvam, no entanto, que os padrões de apego e vínculos afetivos estabelecidos pela criança em desenvolvimento com suas figuras de apego importantes (pais, irmãos, membros da família, colegas de escola e grupos sociais mais amplos) contribuem fortemente para a formação de esquemas iniciais, características cognitivas e comportamentais que marcam o desenvolvimento emocional para a vida, diretamente relacionados ao modo de ser, agir e à própria personalidade.
É, pois, nesse entendimento que se pode conferir aceitação social ao indivíduo transgênero e abandonar o conceito de que o normal e socialmente aceitável seja uma postura heterossexual inquestionável em função dos papéis sociais atribuídos aos gêneros, a qual pressupõe uma continuidade entre sexo, gênero e sexualidade. O processo de reconhecimento da transexualidade, como autoaceitação ou aceitação social, produz culpa, sofrimento psíquico e carência ou distorção da autoestima do indivíduo, bem como implica desigualdade social (CERQUEIRA; DENEGA; PADOVANI, 2020), uma vez que é vetada ao público trans a liberdade de gênero o qual busca, frequentemente, assentar um nome social como forma de reconhecimento de sua identidade de gênero, na tentativa de diminuir violações de direitos (BRASIL, 2016; SANTOS; MARTINELLI, 2019). Ao buscar um nome social, o indivíduo tende a construir uma identidade, ampliar sua autoestima, consolidar a autoaceitação e obter segurança, estabilidade, empatia, aprovação, valorização e aceitação sociais, evitando a segregação, estigmas e preconceitos. Silva et al. (2017) consideram que a discriminação, o preconceito e a consequente exclusão social dos indivíduos trans afastam ou limitam seu acesso aos serviços de saúde – o que pode resultar em prejuízos sérios à saúde desses indivíduos pela expansão de outras doenças. Entendem que o uso do nome social nos serviços de saúde é uma forma de combater as discriminações contra essa população e de garantir seus direitos como usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
Chagas e Nascimento (2017, p. 6) ampliam seus comentários às mulheres e pessoas trans envolvidas com a prostituição como fonte de renda: a “sociedade civil, em sua grande maioria, [...] não as aceita e as exclui de uma convivência social harmoniosa”. Mesmo sem aceitação social, elas convivem com a “comercialização” de seus corpos. Santos e Martinelli (2019) afirmam que, muitas vezes, a premência de materialidade da vida (subsistência) empurra algumas transidentidades, até mesmo em tenra idade, à prática da prostituição como meio de obtenção de renda. Silva, Bezerra e Queiroz (2015, p. 370) colocam que a rua pode ser, também, o lugar da acolhida e aceitação quando se trata de mulheres transexuais e travestis: “[a rua] é apresentada [...] como um espaço receptivo, que apesar de oferecer inúmeros riscos, possibilita a construção de uma nova rede de apoio social baseada na experiência comum de vulnerabilidade”. A rua torna-se um espaço de sociabilidade e, por conseguinte, um espaço de trabalho, geralmente desenvolvido à noite; dessa forma, a prostituição noturna constitui o que parece ser o único meio de produzir renda para suprirem as suas necessidades e sobreviverem. No entanto, essa vivência põe em relevo a vulnerabilidade pessoal e social das pessoas trans, que vivem à margem da sociedade, expostas a todo tipo de riscos, violações de direitos e à violência fatal.
Lima (2021) comenta que é imperioso refletir acerca das indiferenças, dos estigmas e da não aceitação direcionados às pessoas trans pela sociedade, alheia ou mesmo avessa à compreensão e ao acolhimento desses indivíduos: apesar de suas diferenças, também são dignas de aceitação e respeito como seres humanos. Sua exclusão, indiferença, abandono e não aceitação acarretam retraimento social, problemas interpessoais, psicológicos e até mesmo tentativas de suicídio devido às suas orientações sexuais. Desse contexto de isolamento e rejeição social resultam o sofrimento emocional e psíquico, o distanciamento social que impinge ao trans uma vivência sem sentido, sem expectativas e sem esperança, apenas porque o padrão social impõe comportamentos heteronormativos sem possibilidades de abertura para a diversidade de subjetividades. A aceitação social dessas pessoas releva a perspectiva individual da construção subjetiva do bem-estar e privilegia a vertente emocional, em que a felicidade, valorizada e vivida individualmente, é considerada motivação fundamental da vida humana e critério bem-estar, que envolve aceitação de si, aceitação social manifesta pelas relações positivas com os outros, crescimento pessoal, objetivos de vida e autonomia.
Por fim, a qualidade das relações sociais implica diretamente na saúde das pessoas, com reflexos na qualidade de suas vidas, das relações construídas, dos riscos de doenças e morbimortalidade (VEPPO et al., 2020). Quando aceitas e integradas socialmente, as pessoas trans podem desfrutar de benefícios pessoais e sociais, de crescimento pessoal, de maior sensação de bem-estar e de uma vida saudável. A esfera psicológica, nestas condições, se lhe apresenta como um conceito resultante do desenvolvimento positivo de dimensões pessoais, interpessoais e sociais que alimentam, na esfera privada, a recuperação do passado, a apreciação do presente e a mobilização para o futuro dentro de um escopo amplo e significativo de estabilização emocional e psíquica, bem como de vivência social harmoniosa.
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REFERÊNCIAS
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